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  • Fernanda Pimentel

O Cavalo de Troia e a Misoginia


Um dos elementos nucleares

do patriarcado reside exatamente no

controle da sexualidade feminina /.../

Heleieth Saffioti

Uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 9, a PEC 181. No parecer, o relator defende o conceito de proteção da vida a partir da concepção. Na prática, pretende-se proibir o direito ao aborto em toda e qualquer situação.

Exemplifico. Aquela criança com 9 anos de idade que foi estuprada pelo padrasto, ou aquela menina de 15 que foi estuprada pelo vizinho ou ainda aquela moça que pega o último ônibus e volta tarde da noite da faculdade ou do emprego e foi estuprada por um desconhecido num beco escuro, todas elas, se engravidarem, serão obrigadas a ter um filho resultado de uma violência.

Soa exagerado? Mas não é.

Segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 135 estupros por dia em 2016. De acordo com o Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), 70% das vítimas são crianças e adolescentes. Os números são alarmantes, mas não mostram a realidade por completo já que o crime é subnotificado, estima-se que somente 10 % dos casos cheguem ao conhecimento da polícia.

O mesmo vale para os casos nos quais a mãe corre risco de vida ou quando o feto é anencéfalo. Proibição total do direito ao aborto.

Espanta a manobra descarada feita pelos deputados para incluir a pauta do aborto em um PL sobre aumento da licença-maternidade para mães de prematuros. É aí que o Cavalo de Tróia mostra seu interior: a misoginia.

Ao mesmo tempo, vem a indagação, parafraseando Saffioti, por que a Câmara dos Deputados não seria sexista? São, atualmente, 45 deputadas contra 468 homens. Na comissão da PEC 181, foram 18 votos masculinos a favor e 1 voto feminino contra. Sintomático.

O patriarcado ou ordem patriarcal de gênero é demasiadamente forte, atravessando todas as instituições, como já se afirmou. Isto posto, por que a Justiça não seria sexista? Por que ela deixaria de proteger o status quo, se aos operadores homens do Direito isto seria trabalhar contra seus próprios privilégios?”. (Heleieth Saffioti, Gênero, Patriarcado e Violência.)

Também é preocupante a forma como a discussão sobre aborto vem sendo pautada no Brasil. Em boa parte orientada por preceitos religiosos que deveriam ser escolhas individuais e não impostos, na forma da lei, a toda uma população.

Falar sobre o assunto partindo do pressuposto de que a vida começa a partir da concepção é uma armadilha perversa, um engodo para atrair inocentes e fanáticos que corroborem posturas reacionárias. Tal pressuposto retira do debate toda a sua dimensão social, além de reafirmar, de maneira torpe, a naturalização da maternidade.

Sobre a possibilidade de escolha da maternidade como um fundamento da liberdade das mulheres, Saffioti afirma:

"Resta à sociedade a possibilidade de enclausurar a mulher em situações nas quais a única saída seja a maternidade e, deste modo, induzi-la a conceber carne para canhão, como fez o nazismo. Ao tornar o papel reprodutivo da mulher um substituto de seu papel produtivo, a sociedade potencia a determinação sexo, distanciando, na esfera social, a mulher do homem. Eis por que a liberdade feminina está estreitamente ligada à possibilidade de a mulher aceitar ou rejeitar livremente a maternidade." ( A mulher na sociedade de classes: Mito e Realidade.)

A discussão sobre aborto, ao contrário do que propaga a bancada evangélica, deve necessariamente ser fundamentada pelo contexto histórico e social concernente à vida das mulheres no Brasil.

Para tanto, fundamental é considerar as consequências da criminalização. Números da Organização Mundial da Saúde mostram que a cada dois dias 1 mulher morre vítima das complicações de aborto clandestino no país e mais de 1 milhão de mulheres se submetem a abortos clandestinos anualmente.

Diante desse quadro, outro fator crucial é considerar a ineficácia da proibição. Dados da Pesquisa Nacional de Aborto mostram que, em 2010, 1 em cada 5 mulheres entre 18 e 39 anos já recorreu a pelo menos 1 aborto na vida. Você, com certeza, conhece uma dessas mulheres, são mães, irmãs, trabalhadoras, mulheres que estão entre nós todos os dias.

A proibição do aborto é eficaz em matar mulheres. O movimento feminista está associando a PEC 181 ao Cavalo de Tróia. Sorrateiro e perverso, o suposto benefício traz em si o completo menosprezo pelas mulheres e o peso de sua subjugação ao patriarcado.

Legalizar o aborto é defender a vida. Fernanda Pimentel Graduada em Ciências Sociais pela CUFSA - Fundação Santo André

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