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  • Leandro Candido

Os Camponeses de Netto


Nota sobre a exposição Paysans de Gontran Guanaes Netto, organizada pela Orangerie de Cachan (França), entre 24 de outubro e 03 de dezembro de 2016.

Figura 1 - Detalhe da obra Noventa figuras, óleo sobre tela, 200 x 200cm, 2013. Foto de Laurent Lecat (Acervo Gontran Guanaes Netto, gentilmente cedida por Lúcia Guanaes).

Gontran Guanaes Netto é um dos muitos artistas exilados do mundo contemporâneo. Nasceu em 1933, na cidade de Vera Cruz, a 430 km da capital do estado, São Paulo, para onde se mudouem 1950.Em 1969, após a decretação do Ato Institucional nº 5 da ditadura brasileira, exilou-se em Paris. Voltou para o Brasil em 1985 e viveu um segundo exílio, agora em seu próprio país, devido ao esquecimento e consequente anonimato.Até que retornou para Cachan, na região metropolitana de Paris, em 2010, dando início a seu atual “autoexílio”.

Quando chegou à França pela primeira vez,era muito mais um agitador cultural e militante comunista defensor da estética nacional-popular do que propriamente um artista, ainda que não lhe faltassem experiências nesse métier,adquiridas, por exemplo, em seus trabalhos como assistente de Clóvis Graciano, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Mário Gruber. Um inegável privilégio que, no entanto,foi prejudicado pela prática do “tarefismo” na organização cultural do Partido Comunista, ao qual Gontran estava ligado desde 1952.Ainda assim, não podemos desconsiderar os limites materiais impostos pela precariedade institucional da pintura brasileira da época, os quais foram, sem dúvida alguma, entraves muito maiores para seu desenvolvimento individual.

Esse aspecto negativo da realidade nacional de então (a incipiência das escolas de arte, salões, galerias, museus etc.), acrescido pela perseguição policial direta contra artistas e intelectuais da esquerda, contrastava muito com o efervescente contexto em que Netto se inseria ao desembarcar em Paris, após as experiências do Maio de 1968, do Ateliê Popular (ocorrido durante a ocupação da Escola de Belas Artes)e das transformações que envolviam a retomada da figuração naquele país. Logo que chegou, foi convidado a participar da exposição-denúncia América Latina Não Oficial (1970) e, a partir de 1971, passou a integrar o Salão da Jovem Pintura. Em 1972, fundou o Grupo Denúncia (junto a outros três latino-americanos) e filiou-se ao movimento artístico-político denominado Fronte dos Artistas Plásticos, o qual reuniu em torno de suas atividades mais de dois mil artistas radicados na França.

A busca por espaços alternativos para viabilizar a circulação das obras desses artistas não contemplados pelo mercado oficial, dos quais Netto era apenas um caso, desdobrava-se em um projeto político cada vez mais radical que, em 1974, originou o Coletivo Antifascista e a criação do comitê francês do Museu da Resistência Salvador Allende. Posteriormente, Netto se juntou aos esforços para a construção do Museu Solidariedade com a Palestina, em 1978, e, dois anos depois, estava entre os doze membros fundadores do Espaço Cultural Latino Americano de Paris. Nos anos seguintes, participou do Museu Solidariedade com a Nicarágua e da Associação dos Artistas do Mundo contra o Apartheid, sendo nomeado vice-presidente do Museu Contra o Apartheid da ONU.

Algumas das principais intervenções públicas, murais, faixas, painéis e instalações que marcam sua produção coletiva dos anos 1970-80 podem ser vistas nos livros que os antigos integrantes do grupo francês DDP (François Derivery, Michel Dupré e Raymond Perrot) publicaram pela E.C. Éditions. Entre suas principais obras do período destaca-se,sem dúvida alguma, a Sala escura da tortura(1972), realizada pelo Grupo Denúncia, a partir dos relatos de tortura de Frei Tito. Dos trabalhos individuais de Netto, sobretudo gravuras, desenhos e pinturas, destacam-se as que compõem a série Neocolonialismo, apresentada pela primeira vez no Salão de Jovem Pintura de 1972, as obras do acervo do Museu de Arte Contemporânea do Val-de-Marne (MAC-VAL) e da série Povos da América que registram sua passagem pela Casa de Las Américas e bienais de Havana.

Em 1976, o pintor francês Henri Cueco ressaltou uma dualidade que marcou o início da carreira internacional de Netto, ao notar como essa diferença de contexto imprimiu-lhe, ao mesmo tempo, uma decisão e uma culpa que, desde então, atravessam sua obra como dois pontos-de-fuga entre os quais se tensiona a moralidade de suas imagens. Esse desconforto manifesto com relação à condição de artista em um mundo dividido pela exploração e desrealização cotidiana do humano é a contradição que podemos sentir, ainda hoje, em quase todas as suas pinturas, sobretudo em seus camponeses.

Figura 2 - Retirantes, êxodo de camponeses. Acrílico sobre tela, 200 x 200cm, 1982 (Acervo do Museu de Arte Contemporânea do Val-de-Marne, França). Foto de Leandro Candido.

Em 1985, Netto decidiu voltar para o Brasil, abandonando seu emprego como professor na Escola de Arquitetura de Nantes, cargo que assumiu em 1976. De volta a São Paulo, participou da prestigiada exposição organizada por Aracy Amaral no Museu de Arte Contemporânea (Artistas Latino Americanos de Paris, 1985), realizou as obras públicas das estações Marechal Deodoro e Corinthians Itaquera do Metrô de São Paulo (1989-1990), construiu a Casa da Memória Coletiva-Ateliê Coletivo em Itapecerica da Serra (1999) e ajudou a fundar o Ateliê Livre do Diretório Acadêmico Honestino Guimarães do Centro Universitário Fundação Santo André (2007).

Nestas mais de duas décadas, não encontrou compradores para suas telas, o que de modo algum o fez produzir menos. Esses trabalhos quase desconhecidos de seu período pós-exílio são, de muitas maneiras, continuidades do Êxodo camponês e dos Povos da América produzidos nos últimos anos de França. Era essa fase que se via nos quadros que por muito tempo ficaram expostos no saguão da Faculdade de Filosofia e Letras do Centro Universitário Fundação Santo André e que reencontramos nas obras expostas no metrô, na homenagem aos dizimados de Carajás e em outros tantos retratos de trabalhadores rurais.

Ao expor quadros e desenhos da atual produção cachanaise de Netto, a exposição Paysans [Camponeses], organizada pela Orangerie de Cachan, entre 24 de outubro e 03 de dezembro de 2016, ampliou a possibilidade de compreensão desse itinerário, dessa linha de continuidade em seu trabalho que se projeta da denúncia política à resistência anamnésica.

Nelas, a criação da imagem para a expressão do tema importa muito mais que a construção de suas figuras. Cores, espaço, luz, textos manuscritos, conceitos e milhares e milhares de pequenos pontos estilizam o tipo social do camponês como uma espécie de reminiscência sem contexto, inteiramente entregue à elaboração de um fundo utópico que sirva para reflexão. Foices, lenços, enxadas, chapéus, rastelos, peneiras, frutas e facões vagam junto a corpos humanos que trabalham, esperam, suplicam, lutam e se desesperam entre faixas de cores pacientemente pontilhadas.Um fascinante exercício especulativo deesperança e desapego com relação ao repertório de técnicas figurativas tradicionais, ainda que mantendo muito de sua retórica gestual que, por vezes, se aproximada empatia ingênua (naïf).

Figura 3 - Gontran Guanaes Netto diante da série Os condenados da terra (homenagem a Julio Le Parc). 12 óleos sobre tela, 100 x 100 cm, 2000/2011. Orangerie de Cachan, novembro de 2016. Foto de Leandro Candido.

Nos meses que antecederam à exposição, Netto participou das coletivas Caminhos da Arte (setembro) e da jornada Portas Abertas de Ateliês de Artistas (outubro), ambas em Cachan. Aos 82 anos, “o pintor”– como gosta de ser chamado – teve que se ausentar do vernissage de Caminhos da Arte devido a uma premonitória complicação de saúde que, semanas depois, o impediria de continuar suas intervenções diárias junto ao público que visitava Paysans. Um acidente vascular cerebral, no fim do mês de novembro, retirou temporariamente Netto de seu trabalho disciplinado e intransigente. Uma inesperada pausa de fermata que não silencia sua obra, menos ainda seus camponeses que persistem na luta enquanto indício internacionalista de uma autoconsciência humana genérica.

Ao conectar contraditoriamente esses mundos, como não poderia ser diferente, Netto adquiriu uma importância que é muito mais histórica que artística, uma vez que seu trabalho incluiu (por sua lógica inerente) o questionamento periódico da própria relação entre obra e história da arte. Nele, como em muitos artistas de sua geração, trata-se da tentativa de dar uma nova função à relação entre arte e cotidiano, indagando permanentemente as bases sociais de sua condição de existência. Isso já estava escrito no primeiro boletim da Jovem Pintura (1965): “deslocar o debate do plano estético, isto é, do plano das relações entre a arte e a história da arte, para colocá-lo sobre o único plano de nosso interesse, aquele das relações entre arte e história”. Esse foi um aprendizado que Netto jamais abriu mão.

Por essa atitude que é ao mesmo tempo artística e política, os camponeses de Netto – a imagem eloquente daqueles que não apenas foram esquecidos, mas apagados pelo progresso – nos levam ao centro das discussões sobre a construção da “arte contemporânea”. Um conceito em torno do qual se reorganizou ideologicamente, no segundo pós-guerra, uma geopolítica cultural transnacional envolvendo museus, galerias, fundações, bienais, críticos e agências de Estado como a CIA. A luta em que a pintura de Netto esteve envolvida, sempre foi contra essa reconfiguração dita pós-moderna da arte segundo o modelo nova-iorquino, ou seja, contra sua instrumentalização enquanto mercadoria cultural que serve de modelo para o consumo de todas as outras ao nos domesticar pela linguagem.

Figura 4 - Noventa figuras, óleo sobre tela, 200 x 200 cm, 2013. Foto de Leandro Candido.

Leandro Candido

Graduado em Ciências Sociais pela CUFSA - Fundação Santo André

Mestre em Comunicação pela USP - Universidade de São Paulo

Doutor em História pela PUC - Pontificia Universidade Católica (São Paulo)

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