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  • Thiago Lisboa

A Questão do Aborto Sob Duas Perspectivas Éticas


Se você é uma daquelas pessoas que se enquadra na categoria dos "isentões" em relação ao aborto — seja porque ainda não tem um conhecimento ou uma opinião formada sobre o assunto; porque ainda não se sentiu "convencido" com argumentos apresentados por ambos os lados do debate; porque não tem "vivência", "conhecimento de causa" ou um útero para falar sobre o assunto; ou simplesmente porque é homem heterossexual que não tem filho(a) — talvez este texto foi feito para dialogar contigo.

A pessoa que vos escreve também é homem heterossexual sem filho(a), e até pouco tempo atrás se enquadrava em todas as categorias descritas acima. Será que isso ajuda?

Levando em consideração tudo o que já ouvi e já li sobre o assunto, percebi que a maioria (senão todos) os argumentos (contrários e favoráveis) ao aborto repousam, basicamente, em dois pressupostos ou critérios éticos/morais: o "a priori" ou POR PRINCÍPIOS (geralmente utilizado pelos contrários ao aborto) e o "consequencialista" ou POR CONSEQUÊNCIAS (geralmente utilizado pelos favoráveis à causa).

Estes pressupostos/critérios éticos são bem intuitivos em si mesmos e indicam, basicamente, que os contrários ao aborto pensam mais nos (e seguem mais os) princípios do que (n)as consequências, enquanto que os favoráveis pensam mais nas (e seguem mais as) consequências do que princípios. Isso não significa dizer que os primeiros levem em consideração apenas os princípios, ignorando com isso as consequências (e vice-versa em relação aos segundos); significa apenas que para os primeiros, os princípios "pesam mais" que as consequências (e o inverso é o que costuma ocorrer aos segundos).

Surge daí a dúvida: qual seria então o "melhor" critério ético ou o "mais certo/correto": aquele que parte de princípios ou o que considera as consequências?

Depois de ponderar bastante sobre o assunto, analisando uma série de argumentos contrários e favoráveis — lembre-se que eu já fui um "isentão"! —, cheguei à conclusão que a resposta mais sensata a esta dúvida seja, talvez: os dois critérios. Não um ou outro critério ético, mas a decisão que envolva a reflexão e a ponderação de ambos.

Explico: é impossível pensar e agir apenas por puro princípio ou por pura consequência. Tudo que fazemos na vida — ou melhor: todas os problemas cotidianos que nos cercam — exige que tomemos posições ora por princípios, ora por consequências e ora entrelaçando ambos os critérios.

Exemplo: não mentir é um princípio e, com certeza, deve permanecer como tal, pois do contrário não teríamos condições de estabelecer e manter relações de confiança com ninguém! No entanto, às vezes inventamos e falamos pequenas e "doces" mentiras visando certas consequências, tais como: preservar relações de confiança, evitar a mágoa ou a dor alheia, etc.

É evidente que seria fantástico se todos nós agíssemos apenas por princípios, ou melhor, se guiássemos todas as nossas ações sempre e apenas com base nas mesmas regras e princípios morais, independente das circunstâncias. No entanto, são exatamente as circunstâncias e imprevisibilidades da vida que impedem isso, o que nos obriga a improvisar. Improvisar significa flexibilizar nossos princípios e tomar partido dos problemas considerando as circunstanciais e suas consequências, entrelaçando com isso os dois critérios éticos.

O mesmo pode ser aplicado ao debate sobre o aborto: por um lado, ser contrário à causa apenas por princípio é ignorar todas as circunstâncias que deram origem à gravidez, bem como ignorar todas as consequências futuras da gestação e parto; por outro lado, ser favorável ao aborto apenas com base nas consequências é relativizar o princípio da "vida" (seja lá o que isso significa e quando começa, daí as aspas).

É exatamente aí que entram em cena as grandes (e polêmicas) questões relacionadas ao aborto, deixando algumas pessoas em cima do muro. Pela via dos princípios, surgem perguntas como: "quando começa a vida?" e "quem tem (e quando tem) direito de decidir sobre a vida?". Já pela via da ética consequencialista surgem questões como: "a gestante corre risco/perigo de vida?", "há condições do feto se desenvolver?", "há condições de/para criar o feto?", "se o feto foi fruto de uma relação não consentida/estupro ou algo semelhante, a gestante tem mesmo que dar continuidade à gravidez?".

Sabemos que religião e ciência fornecem subsídios diferentes (e até antagônicos) para responder estas perguntas, o que reabre esse leque de questionamentos. Que fazer?

Veja que há várias possibilidades de decisão e ação, mas se partirmos apenas de um (ou outro) critério ético este "leque de possibilidades" perde abas. E é aí que mora o problema: quando fechamos as abas deste leque, fechamos as possibilidades de escolha, ou melhor, minamos a liberdade (ou o "livre-arbítrio", se preferir) das gestantes e demais pessoas envolvidas diretamente com esta ou aquela gravidez em específico.

Olha só como o problema fica interessante agora: fechar as abas do leque significa limitar ou ferir, POR CONSEQUÊNCIA, o PRINCÍPIO da liberdade.

Alguém poderia objetar dizendo que esta afirmação parte (e aplica) convenientemente um critério ético (o consequencialista) para defender a liberdade como princípio, em detrimento do princípio da vida. Logo, o "certo/correto" seria tratar ambos os termos (liberdade e vida) pelo mesmo critério ético.

A resposta a esta objeção seria a mesma dada anteriormente: é impossível pensar, decidir e agir apenas por puro princípio ou por pura consequência, pois todos os problemas cotidianos exigem tomadas de decisão que considere ambos os critérios. Nesse sentido, a "melhor coisa a fazer" seria deixar a gestante decidir por si própria se aborta ou não, respeitando POR PRINCÍPIO sua liberdade de escolha, bem como entendendo POR CONSEQUÊNCIA sua decisão (que, em última instância, cabe apenas a ela e a mais ninguém).

Não contente, esse alguém poderia insistir na objeção afirmando que no caso do aborto é possível sim comparar vida e liberdade pelo mesmo critério ético, mas aí teríamos que focar apenas na ética dos princípios. Segundo este alguém, quando se trata do aborto, a aplicação da "ética dos princípios" à vida e à liberdade nos leva um impasse: mesmo preservando por princípio a liberdade de escolha da gestante, se esta optar pelo aborto, o princípio da liberdade (da gestante) acaba "ferindo" o princípio da vida (do feto).

Veja, de novo, que o impasse apresentado, mesmo baseado na ética dos princípios, recai em uma consequência: o princípio da vida só é "ferido" se a gestante, por consequência do princípio da liberdade, optar pelo aborto. Mais uma vez, somos obrigados a entrelaçar, refletir e ponderar ambos os critérios éticos.

Diante desta situação, a "melhor coisa a fazer" seria decidir qual princípio vale (ou prevalece) mais que o outro: o da liberdade sobre a vida ou o contrário?

Intuitivamente, e sem levar em consideração as circunstâncias de cada caso em particular, não há dúvida de que a maioria das pessoas responderiam, sem titubear, que o princípio da vida prevalece sobre o princípio da liberdade. Desde os argumentos apresentados por Thomas Hobbes em seu "O Leviatã", somos convencidos de que, em nome da preservação da vida em última instância, aceitamos restringir a liberdade.

O problema é que Hobbes não estava falando de embriões, mas de pessoas dotadas de um corpo e uma mente "formada" ou "desenvolvida", isto é, em plena capacidade de usufruto. Assim, como Hobbes e os demais clássicos da política (e da ética) não oferecem respostas satisfatórias ao aborto, caso queiramos sobrepujar o princípio da vida ao da liberdade neste caso específico, somos obrigados a responder, de maneira direcionada e enviesada, às questões: "quando começa a vida?" e "quem tem (e quando tem) direito de decidir sobre ela?".

É aí que entram em cena respostas de cunho religioso relacionados ao princípio da vida. Mas as respostas religiosas geram dois problemas.

O primeiro é que o princípio da vida definido em termos religiosos é um dogma, ou seja: é algo inquestionável, não aberto a discussões e debates baseados em argumentos racionais. Sendo um dogma, o princípio da vida definido em termos religiosos não depende da discussão e aceitação racional e ponderada, mas da simples fé e crença nele, tal como definido pela religião.

O segundo problema é que as pessoas que partem da definição religiosa tendem a universalizar esta concepção, isto é, fazê-la valer para todas as pessoas indiscriminadamente, incluindo-se aí aquelas que: não possuem a mesma crença; não tem a mesma religião e, portanto, não compartilham dos mesmos valores e princípios religiosos.

Ao universalizar esta concepção religiosa sobre a vida, a sociedade não apenas tende a impor "de cima para baixo" (e "de fora para dentro") uma determinada concepção ética para todos (e um certo conteúdo valorativo ao tema), como também acaba desrespeitando a individualidade e a liberdade de cada pessoa decidir sobre os rumos de sua própria vida de maneira autônoma (isto é, a partir dela mesma) e laica (isto é, de maneira não religiosa ou não baseada em crenças e artigos de fé estranhas e alheias a ela).

Sobre estes dois problemas, o filósofo Kant disse em algumas de suas obras que todo princípio moral ou ético baseado em conteúdos pré-determinados "por outro" (como no caso dos princípios religiosos) funda uma ética "heterônoma" (ou seja, uma ética não livre). O que Kant quer dizer com isso é que quando uma regra moral ou um princípio ético é formulado a partir de referências exteriores à razão humana (como a ética religiosa), tal regra ou princípio submete e subjuga as pessoas à uma vontade exterior e alheia a elas mesmas, o que, por definição, torna as pessoas submissas a vontades alheias e, portanto, não livres em suas ações. Isso significa que partir da definição religiosa de vida (e de quando esta começa) para tecer opiniões sobre o aborto é o mesmo que tomar partido sobre o assunto de maneira enviesada, heterônoma, submissa e subjugada a interesses e vontades alheias.

Perceba agora o tamanho do problema: é razoável e intuitivo submeter o princípio da liberdade ao princípio da vida. O problema é quando submetemos o princípio da liberdade à uma concepção religiosa de vida, alheia à discussão e à aceitação racional e ponderada sobre a mesma. Ao submetermos a liberdade à vida definida em sentido religioso, submetemos o princípio da liberdade aos pressupostos de uma dada religião, o que implica em heteronomia e submissão à "uma outra" vontade alheia ao universo humano.

Diante desta situação, mais uma vez a "melhor (e mais certa) coisa a fazer" seria refletir e ponderar ambos os critérios éticos para ambos os termos (vida e liberdade) de maneira autônoma e laica, isto é: de maneira livre, baseado apenas na razão humana e sem apelar a princípios religiosos ou pré-estabelecidos por alguma crença religiosa em particular.

Porém, como neste caso há um impasse entre dois princípios (vida e liberdade), a "melhor (e mais certa) coisa a fazer" seria oferecer à gestante TODAS AS CONDIÇÕES POSSÍVEIS para que ela tenha PLENA CAPACIDADE, POSSIBILIDADE e LIBERDADE de pensar e decidir, DA MELHOR MANEIRA POSSÍVEL (isto é, de maneira livre ou autônoma), qual dos dois princípios vale mais diante DESTA situação particular (uma gravidez indesejada ou não), respeitando POR PRINCÍPIO sua liberdade de escolha (autonomia) e POR CONSEQUÊNCIA sua decisão (autônoma) de abortar ou não.

Veja, mais uma vez, que é impossível pensar, decidir e agir apenas por puro princípio ou por pura consequência, pois todos os problemas que nos cercam exigem que tomemos posições entrelaçando e ponderando ambos os critérios éticos, simultânea e reciprocamente.

Assim, no caso em debate, a melhor maneira de oferecer às gestantes todas as condições possíveis para que tenham plena capacidade, possibilidade e liberdade (autonomia) de pensar e decidir sobre a interrupção (ou não) da gravidez — respeitando (por princípio e por consequência) a liberdade de escolha que cada uma tem sobre sua própria vida, corpo e gestação — seria: 1) decretando uma lei federal favorável ao aborto; 2) instituindo um amplo programa de assistência médica e psicológica às gestantes indecisas; 3) instituindo um amplo programa de conscientização sobre as consequências de ambas as escolhas: a interrupção da gravidez ou a escolha pela gestação, parto e criação (com trocas de vivências e tudo o que acharem ou for necessário); 4) entendendo que em última instância, a decisão cabe apenas às gestantes.

Aplicar estas medidas básicas não aumentará o número de abortos, pelo contrário, diminuirá. Não matará vidas, pelo contrário, salvará. Não se trata de uma "política genocida" ou de "infanticídio" como costumam afirmar setores conservadores contrários ao aborto, mas de um amplo programa de saúde pública que não apenas visa fornecer amparo às gestantes indecisas como também amplia as condições (e possibilidades): de debate sobre o tema, de liberdade de escolha e de solidariedade entre mulheres bem como entre homens e mulheres. Todos saem ganhando com isso.

Qualquer outro argumento que tente minar as condições apresentadas — seja por via religiosa ou por ideologias políticas moralistas e conservadoras — acabam por minar a AUTONOMIA das gestantes, das mulheres como um todo e de todas as pessoas diretamente envolvidas em cada gestação específica, impedindo que elas tenham plena capacidade e possibilidade de decidir por elas mesmas sobre suas próprias vida e liberdade.

No fim das contas, as medidas apresentadas aqui — que na verdade é uma síntese das propostas formuladas por movimentos feministas — são mais liberais e libertárias do que o "exclusivismo" liberal-libertário reivindicado pelas alas conservadoras da direita atual, alas que: por um lado, tendem a reduzir o amplo conceito de liberdade à mera liberdade de iniciativa econômica de compra e venda no mercado; e, por outro lado, tendem a reduzir o amplo conceito de vida à mera interpretação religiosa e ideológica desta, uma interpretação que geralmente não reconhece e concede direito de vida àqueles que violam a propriedade alheia.

E aí, ajudou?

Thiago Lisboa Cientista Social especialista em História Social Mestre em Filosofia pela UFABC - Universidade Federal do ABC

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