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Na semana passada, o Santander Cultural de Porto Alegre cancelou a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, devido alguns movimentos acusarem esta mostra artística de incentivar a pedofilia, a zoofilia e ultrajar símbolos religiosos.
Um dos grupos envolvidos, o Movimento Brasil Livre (MBL), reclamou o fato da exposição ser financiada com dinheiro público (via Lei Roaunet) e defendeu que as obras são ofensivas e não contribuem para a diversidade - mesmo que eles próprios não se preocupem com ela. O banco, por sua vez, se desculpou por ter desagradado seus clientes e afirmou que as ideias apresentadas na exposição não fazem parte de sua “visão de mundo” e dos “valores” que pregam.
A atitude dos grupos envolvidos no cancelamento da exposição causa-nos uma óbvia repulsa, mas de longe é capaz de nos espantar. Tanto o MBL quanto o Santander apenas expressaram o que verdadeiramente são: um grupelho reacionário proto-fascista, disfarçado de “liberal” e uma instituição financeira.
O Santander Cultural, assim como tantos outros “espaços culturais” mantidos por bancos, está na vanguarda da defesa da arte puramente mercantil e, de preferência, vazia de qualquer sentido emancipatório. Vale-se de seus recursos financeiros para impor e superar tendências, além de ser fundamental, junto às galerias, shoppings e merchants, na conservação da produção simbólica como um grande bazar. O curioso é que, apesar da pujança de seus recursos, o Santander Cultural e sua turma recebam frequentemente financiamento público para manter as suas atividades.
Quando um representante do MBL reclamou, em seu canal, o fato da exposição Queermuseu ter sido realizada com auxílio público, eu também fiquei inconformada. Não em nome dos princípios morais da Idade Média, como os defendidos pelo MBL, mas pela velha prática do Estado brasileiro de destinar a pouca verba pública àqueles que já possuem de sobra. Assim é nas artes com as instituições privadas ou com museus vinculados às corporações financeiras; também na educação com as editoras, os sistemas de ensino e as universidades particulares; no transporte; na saúde, entre outros... Em todos esses casos, os recursos públicos, na maior parte das vezes, não atendem às necessidades públicas, já que é raro, raríssimo, os grandes conglomerados empresariais representarem os interesses da população.
O cancelamento da exposição Queermuseu deixa claro como os interesses financeiros são diametralmente opostos a qualquer potencialidade humanista que uma boa arte pode proporcionar. Preocupado apenas com seus clientes, o Santander Cultural esquivou-se dos dilemas e contradições que qualquer produção artística pode gerar. À luz das primeiras reclamações e sob o risco de perder rendimentos, o pretenso centro cultural preferiu abafar o debate que a exposição Queermuseu propiciava.
Todo artista ou pesquisador comprometido com o ramo artístico sabe que as artes, ao longo da história da humanidade, cumprem também o papel de representar conflitos e contradições presentes na sociedade em que ela é produzida – sejam eles de caráter material, social ou ideológico, independente da consciência do artista em relação a este papel. A função mínima que uma instituição artística séria e honesta deve cumprir é fornecer espaço e condições para a exposição, fruição, reflexão e debate de obras que discutem problemas da atualidade, por mais polêmicos que eles possam parecer.
Ao tratar de temas como sexualidade, religião e gênero, a exposição Queermuseu apresentou conflitos sociais que permeiam nosso cotidiano. Afinal, vivemos numa realidade em que a sexualidade ainda é considerada um tabu e resiste entre a espetaculização falseada dos prazeres sexuais e a castração moral de nossos instintos. Também vivemos em um mundo permeado pela intolerância religiosa. E, de forma indecente, convivemos com o fato de residirmos no país que mais mata a população LGBTQ no mundo.
Neste sentido, a exposição foi um sucesso, pois conseguiu reunir um conjunto de obras capazes de estimular os mais profundos sentimentos em um público variado... do ódio ao orgasmo. Sua falha foi não contar com uma instituição artística que soubesse lidar com o furor catártico e contribuir para que os indivíduos frequentantes e, especialmente, “protestantes” pudessem sair dali mais humanizados. A exposição agradou a muitos, mas também contestou valores tão arraigados, que motivou um verdadeiro frenesi odioso em muita gente. Neste ponto, o Queermuseu venceu. Por mais que tenha sido encerrada e seus detratores assumam o papel de “vencedores”, não podem negar que no momento de solidão, em frente ao espelho ou com a cabeça no travesseiro, quando estão próximos de si mesmos, a provocação daquelas obras os arrepia dos pés à cabeça!
Mas afinal, o que será que tanto incomoda essa juventude do MBL que não suporta uma manifestação em defesa da liberdade de gênero? Será que Freud pode nos ajudar a explicar? Será atração reprimida? Castração psicológica? Complexo de Édipo? É difícil saber... Contudo, para além da psiquê mal resolvida, não se pode perder de vista que atitudes como essas cumprem uma função política perigosa no contexto nacional: ampliar o medo, a desinformação e o ódio.
O MBL coloca-se politicamente como um defensor da ideologia liberal e quanto a isto não mente. Contudo, seu liberalismo resume-se apenas ao plano econômico, à “livre” circulação de capitais e mercadorias. Mas, no plano da moral, da ética e da igualdade social, ele está a quilômetros de distância de qualquer fagulha de liberdade. Suas ideias e atitudes são ultraconservadoras e deixariam até minha finada avó com vergonha.
Essa abordagem moralista não é apenas uma questão de valores, mas compõe um ardiloso jogo de esvaziamento do debate político em favor do atual projeto de Brasil, representado pelo (des)governo Temer. Eliane Brunn, recentemente, nos lembrou (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/18/opinion/1505755907_773105.html) da artimanha do MBL, que deu as caras no país na suposta luta contra a corrupção, colaborando na derrubada de Dilma Rousseff, mas que se cala diante de um dos períodos mais corruptos da história. Não esquecemos de março de 2016, quando sua “grande” manifestação contra a corrupção deixou de citar o nome de Michel Temer.
Já que não podem falar contra a corrupção, para não atrapalhar o projeto de destruição do país que eles difundem, a tarefa do MBL passa a ser a promoção da histeria moral, do ódio e da desinformação, que parecem fazer com muito prazer. Assim os vemos perseguindo professores, artistas e intelectuais ou acusando determinados grupos, a quem supostamente residiria a culpa sobre a crise da sociedade.
Por mais que não aceitem a comparação, é impossível negar sua semelhança com o modos operandi fascista. Vivem da propaganda de verdades absolutas, apreciam o ódio, atacam moralmente seus opositores políticos e criam inimigos comuns a ser combatido nessa sociedade: gays, lésbicas, esquerdistas, supostamente responsáveis pela degeneração da família brasileira.
Com essa perspectiva eles hostilizaram a exposição do Queermuseu, usando propagandas mentirosas que não passavam por crivo reflexivo. Qualquer pessoa que observa os quadros e o propósito da exposição, com um mínimo de cuidado, concluiria que ela não passa nem de perto de estimular o que foi denunciado. Mas para o bom discurso desonesto, a verdade não importa, apenas a comoção que a propaganda pode proporcionar. Na mais pura canalhice, esses jovens pretendem se colocar como os novos paladinos da moral e da virtude, enquanto na verdade, são o braço direito daqueles que nos querem trabalhando 12 horas por dia. Para o banco Santander, que sabe quem são seus amigos e valoriza seus clientes e rendimentos, não houve problemas em acatar a vontade dos histéricos.
Isto nos mostra uma lição, caros companheiro do Queermuseu: não é com os bancos que realizaremos qualquer debate progressista nesta sociedade. Existem muitos grupos à esquerda levando essas e outras questões a sério. E a população, como vocês sabem, está aberta ao debate honesto, por mais polêmico que seja o tema.
Professora Mal-Educada