
Talvez um dos fundamentos desta acirrada polarização presente na maioria dos debates moralistas atuais são os valores pessoais de cada um, ou melhor, valores socialmente construídos que são absorvidos e reproduzidos inconscientemente e dogmaticamente pela maioria das pessoas em suas respectivas vidas cotidianas. Esses valores (vale ressaltar: socialmente construídos) alicerçam e moldam a visão de mundo de cada pessoa, bem como dão sentido e norte às suas vidas, influenciando suas práticas e tomadas de decisões ao longo da vida. Isso significa que a compreensão do (e a tomada de posições no) mundo não é direta, nua e crua, mas mediada por uma série de valores e princípios tomados como inquestionáveis.
O conjunto de valores e princípios que cada um carrega em si e para si não apenas é aquilo que dá sentido e norte às suas vidas, como também constituem o critério pelo qual a maioria das pessoas entende, avalia, julga, toma posições e age no mundo. O problema dos valores e princípios é que alguns são mais (e outros menos) conservadores (e até reacionários), enquanto outros são progressistas (e até revolucionários); isto é, alguns conjuntos de valores tendem a conservar e a reproduzir a ordem estabelecida (em todos ou em alguns sentidos), enquanto outros tendem a romper (seja de maneira progressiva ou radical) as amarras e grilhões sociais que tolhem os indivíduos.
Nos embates opinativos do cotidiano, a maioria das pessoas (eu me incluo) acaba impondo aos outros não apenas seu ponto de vista, mas sua visão de mundo, seus nortes, seu sentido da vida e sua perspectiva do que é certo e errado, bom e ruim, virtuoso e vicioso, do que pode e não pode, do que é ou não é arte, etc. No fim das contas, sobra muita imposição e pouca reflexão, e ninguém coloca em xeque seus próprios conjuntos de valores e princípios, esquecendo-se de algo primordial: que os valores podem ser alterados, visto que eles não são eternos, transcendentes e inquebrantáveis, mas ao contrário: são finitos, históricos, falíveis, passíveis de questionamento, de discussão, reflexão e revisão; enfim, porque são apenas valores humanos, demasiadamente humanos.
Essa polarização que nos rodeia através dessas inflexões de ordem valorativa (e cujo episódio do Queermuseu foi apenas o exemplo mais recente) mostra que precisamos "transvalorar" nossos valores, não exatamente nos moldes clássicos como proposto por Nietzsche, mas de acordo com os problemas e possibilidades enfrentadas pela nossa realidade atual, com todo engodo e retrocesso moral e intelectual que está aí sobre o tabuleiro da vida.
No entanto, a tarefa é árdua, pois transvalorar significa mergulhar fundo neste obscurantismo e dogmatismo valorativo atual visando com isso identificar seus fundamentos últimos e criticá-los pela raiz. Eis a tarefa (assim penso eu) daqueles que se propõem à filosofia, ao filosofar e ao debate filosófico com as pessoas comuns diante do nosso atual cenário: escrutinar os valores e princípios que fundamentam, dão sentido e norteiam a concepção de mundo, de ser humano, de sociedade, de política, de liberdade, de felicidade, de ética e de ação de cada um.
Não se trata de uma suspensão absoluta dos juízos, mas de uma postura saudavelmente cética, crítica (e por que não revolucionária?) que visa reconstruir ética e integralmente a autonomia de pensamento e ação de cada um de nós diante deste cenário atual marcado pelo domínio e pela ação de um rebanho social dogmático e obscurantista, que se orienta por valores e princípios conservadores e retrógrados.
Darei um exemplo do que quero dizer com "fundamentos dos valores e princípios morais e a necessidade de entendê-los e criticá-los em sua raiz, visando com isso uma reconstrução ética e revolucionária diante do obscurantismo e dogmatismo do comportamento atual de rebanho".
Depois do episódio Queermuseu, membros e simpatizantes do MBL foram acusados de praticar censura. Paula Cassol, Kim Kataguiri e Arthur do Val (todos membros do MBL) se defenderam das críticas afirmando em uníssono (isto é, reproduzindo o mesmo discurso, o que mostra que eles são minimamente organizados enquanto movimento social) que "o MBL não censurou nada nem ninguém, apenas boicotou a exposição. E quem afirma que o MBL praticou censura está sendo desonesto. Boicotar é uma prática legítima da democracia e mostra a soberania do consumidor". Aparentemente, essa defesa parece fazer sentido, ou seja, tudo parece indicar que o MBL é coerente e está certo no que disse e fez. Mas é só aparentemente, pois, se formos a fundo nesta questão (tal como propus acima como tarefa da filosofia atual), veremos que o MBL praticou as duas coisas, isto é: o movimento boicotou a instituição mantenedora da exposição objetivando com isso proibir (ou, se preferir, censurar) a exposição. Explico.
O MBL é um movimento social que reúne pessoas que compartilham dos mesmos valores e princípios defendidos pelo movimento; ou seja, o MBL é um movimento social que congrega, sintetiza e expressa uma "imagem de mundo" (de sociedade, de economia, de política, de ser humano, de arte, de moral, de dever, etc.) que é muito comum e familiar a um grande número de pessoas. Essa imagem de mundo comum e familiar da qual um grande número de pessoas compartilha com o MBL baseia-se em um conjunto de valores e princípios morais e políticos geralmente conservadores que, além de ser tomado como inquestionáveis, são ideias que moldam os pensamentos e ações de cada um definindo o que é considerado certo ou errado, o bom ou ruim, o que se deve e o que não se deve fazer, bem como o que deve e o que não deve ser considerado arte.
Como este conjunto de ideias conservadoras costuma ser dogmático (ou seja, valores que não são passíveis de discussão e questionamento) tudo aquilo que seja contrário estas ideias é (ou tende a ser) considerado como "errado", "ruim", "mau", etc., devendo ser proibido, combatido e aniquilado (ou, se preferir: censurado). Exemplo cabal disso foi a afirmação de Kim Kataguiri no início de seu vídeo rebatendo as críticas dirigidas ao MBL por conta do episódio ao Queermuseu. Segundo ele: "O que você está fazendo é errado! Não representa meus valores!" Perceberam? Ou seja, como a maior parte deste conjunto de valores e princípios são conservadores e dogmáticos por natureza, as pessoas que os carregam (inclua-se aí o MBL e seus seguidores) costumam expressar profunda indignação e descontentamento quando se depararam com ideias e práticas contrárias às suas, principalmente quando estas ideias e práticas provocam, questionam, criticam (e até vilipendiam) seu conjunto conservador de ideias.
Agora vamos mergulhar um pouco mais fundo nesta questão. Como afirmei anteriormente, uma vez que esse conjunto de valores e princípios define (e vira critério) do que seria o certo e o errado, de como se deve ou não pensar e agir, e do que deve ou não ser considerado arte, etc., esse conjunto de valores e regras morais influencia (e até determina) a maneira como as pessoas entendem, julgam e principalmente agem subjetiva e objetivamente no mundo. Isso significa que esse conjunto de ideias conservadoras molda a individualidade, a personalidade e a atitude de cada um, ou melhor: moldam o pensamento e a ação, a subjetividade e a objetividade de cada um.
Com base nisso, subjetivamente (ou seja, no âmago ou no foro íntimo de cada um, no âmago do seu ser) as pessoas guiadas por esse conjunto de ideias conservadoras de fato desejam que todas as ideias e práticas contrárias a tudo aquilo que elas acreditam (isto é, tudo aquilo que elas desvalorizam e tomam por "errado" em sentido valorativo moral) devem ser proibido ou censuradas. Em outras palavras: subjetivamente (ou seja, em seus foros íntimos) estas pessoas de fato desejam ou querem o fim do Queermuseu, pois a exposição expressa tudo (ou quase tudo) aquilo que seus valores e princípios morais definem como "errado", "ruim", "não artístico", etc. Assim, se estas pessoas (ou grupo de pessoas) tivessem poder absoluto sobre a sociedade e a condução da vida de todos, elas certamente proibiriam (ou censurariam) todas as ideias e práticas contrárias aos seus valores e princípios, a exemplo de tudo o que envolveu os eventos relacionados ao caso Queermuseu. Mesmo que estas pessoas não tenham este poder absoluto de censurar todas as ideias e práticas contrárias aos seus valores e princípios, elas usaram de seu poder social relativo (enquanto movimento social) para atingir objetivamente suas finalidades frente ao caso: influenciar um grande número de pessoas a boicotarem a instituição que promove e mantém uma exposição que difunde ideias contrárias aos seus valores e ao que consideram artístico. Eis aí o pulo do gato de Schrödinger!
Vale repetir o pulo do gato: subjetivamente os conservadores (ou o grupo de conservadores, tal como o MBL) desejam sim proibir ou censurar tudo aquilo que seja contrário ou que contraria seus valores e princípios (tal como a exposição Queer) de modo que, se elas tivessem poder absoluto para controlar a sociedade e as instituições sociais, certamente censurariam a exposição. No entanto, como não possuem este poder absoluto sobre a sociedade, mas apenas um poder relativo de influenciá-la, a única maneira objetiva que eles encontraram de colocar em prática seu desejo subjetivo de proibir e censurar a exposição foi boicotando (e influenciando o maior número possível de pessoas a boicotar) a instituição que promove e mantém a exposição. Em resumo: subjetivamente, o MBL e seus seguidores desejaram e agiram no ensejo de proibir e censurar a exposição; mas, objetivamente, a maneira que eles colocaram em prática sua intenção de censura foi boicotando (e influenciando as pessoas a boicotar) a instituição que financia, promove e mantém a exposição.
Portanto, quando Arthur do Val pega sua câmera e sai às ruas de Porto Alegre abordando as pessoas e pergunta a elas se o MBL praticou censura ou boicote à exposição, tal pergunta é, na verdade, um falso dilema entre boicote e censura, pois o ato objetivo de boicotar o Santander não apenas foi uma estratégia para cancelar a exposição, como também é a expressão prática ou objetiva do desejo subjetivo de proibir ou censurar tudo aquilo que é contrário aos seus valores e princípios morais, a exemplo da exposição mantida pelo banco. Ou seja, a campanha de boicote ao Santander foi um recado claro ao mantenedor do Queermuseu de que o MBL e seus simpatizantes não apenas discordam da forma como a exposição foi organizada e mantida, mas também um recado para dizer que tudo aquilo seja contrário às ideias e práticas conservadoras do movimento devem ser impedidas, proibidas (ou, se preferir, censuradas).
Da maneira como foi arquitetado o boicote ao banco, a finalidade do MBL e seus simpatizantes foi sim censurar a exposição (é claro, com base naquilo que eles pensam ser arte e o que deve ser considerado artístico e exposto em museus). Segundo outra fala de Kim Kataguiri: "a arte deve representar o belo". Além desta afirmação de Kataguiri expressar um juízo de valor moral impositivo e normativo em relação à arte (ou seja, do que a arte "deve ser" e não do que a arte "é", configurando com isso uma imposição autoritária e moralista do que deve e do que não deve ser considerado como "arte"), tal afirmação, em si mesma, não possui nenhum significado filosófico a respeito do tema, pois, se a arte assim definida deve realmente representar o belo, a próxima pergunta que se faz é: o que é o "belo"? E assim o gato de Schrödinger do MBL vai dando seus pulos noturnos, "cagando regras" na areia alheia.
Quando o MBL e seus simpatizantes afirmam que a exposição Queer incentiva pedofilia e zoofilia com dinheiro público, não se trata apenas de uma visão simplista, moralista, higienista e rasa do que seja a arte, nem muito menos uma simples leitura equivocada das obras a partir de uma limitadíssima capacidade de e para compreender metáforas, ficções e representações da realidade. Trata-se, no fundo, de uma concepção de mundo que tende a espelhar, entender, avaliar, valorar e julgar todas as coisas de uma maneira conservadora, moralista, dogmática, maniqueísta, binária e pueril. Trata-se, portanto, de todo um conjunto de valores e princípios morais conservadores que moldam a imagem conservadora de mundo do MBL, cujo dogmatismo embutido não costuma fazer concessões à maneira como eles pensam e agem, fechando com isso as portas para o debate dos princípios e fundamentos daquilo que eles defendem. Trata-se, assim, de ideias que fundamentam as afirmações escusas, distorcidas, simplistas, moralistas, higienistas, rasas e pueris do que seja (e do que deve ser considerado como) arte, bem como do que deve ser considerado certo, justo, bom, correto, etc. É isso que precisa ser posto em questão, ou melhor, esta é a tarefa (segundo o ponto de vista de um cientista social) da filosofia e da intelectualidade atual diante do dogmatismo e do obscurantismo promovido por esta ascensão social conservadora cuja expressão mais imediata no Brasil é o MBL e seus asseclas.
Se não colocarmos em xeque estes problemas pela sua raiz, o autoritarismo e o moralismo consensual e amplo desses jovens líderes sociais e formadores de opinião dogmaticamente compromissados com valores e princípios conservadores vencerá. Se eles vencerem, seremos obrigados a contar à posteridade uma história de terror produzida e dirigida pelos think-tanks libertários norte-americanos, atuada pelo MBL e seus asseclas, ilustrada por Romero Britto e com trilha sonora composta por Lobão, Ultraje a Rigor e Zezé de Camargo. Se isso acontecer, tragédia e farsa coexistirão simultaneamente no tempo-espaço histórico nacional, a exemplo do gato do experimento de Schrödinger.
Enfim, fazer frente a este "pulo do gato" requer, talvez, passar da crítica das imagens à critica do conjunto das ideias e práticas que fundamental a imagem conservadora de mundo do MBL e seu rebanho, transvalorando os valores. Esta foi uma das lições trazidas pela catarse social promovida pelo Queermuseu. Parabéns aos curadores(as) e organizadores(as) da exposição!
Thiago Lisboa Cientista Social especialista em História Social Mestre em Filosofia pela UFABC - Universidade Federal do ABC