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Recentemente os debates sobre educação no Brasil foram direcionados aos temas de interesse do autodenominado movimento Escola Sem Partido (1). Embora a organização tenha sido criada em 2003, foi nos últimos três anos que ganhou relevância no cenário nacional.
Através de diversos projetos de lei encaminhados em instâncias municipais, estaduais e federais, o movimento procura tipificar aquilo que ele chama de “doutrinação ideológica” em espaço escolar e propõe maneiras de combatê-la. Entre essas maneiras está a fixação de cartazes em sala de aula sobre a postura que se espera dos professores e a criação de canais de denúncia no Ministério Público. As punições ao suposto “professor doutrinador” não são as mesmas em todos os projetos, chegando, em alguns casos, à pena de prisão!
O destaque alcançado pelo movimento já provocou respostas vindas de diversos setores da sociedade (professores, pesquisadores da educação, juristas etc.), representantes da esquerda e da direita liberal. O MPF se pronunciou caracterizando a matéria como inconstitucional (os defensores do ESP dizem basear-se na Constituição), e até a ONU enviou um alerta ao governo brasileiro sobre as possibilidades de censura ao professor que o(s) projeto(s) possui(em).
Abaixo destaco alguns pontos que me parecem fundamentais para entender o movimento Escola Sem Partido e a natureza conservadora de seu projeto.
O FANTASIOSO DIAGNÓSTICO DA DOUTRINAÇÃO IDEOLÓGICA
Para os membros do ESP, a doutrinação ideológica consiste na imposição dos ideais morais, políticos e/ou religiosos do professor sobre seus alunos. Isso pode ocorrer através da parcialidade na exposição de alguns conteúdos ou até mesmo da coerção por meio de notas ou medidas disciplinares. Conforme a justificativa do projeto de lei:
É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis. (2)
O principal pressuposto de que parte o movimento, o de que “professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas” nos é apresentado como verdade sem nenhuma necessidade de comprovação. Simplesmente, é um “fato notório”. Infelizmente, tamanha notoriedade ainda não permitiu que o fenômeno fosse comprovado. Não há pesquisas que indiquem a generalização da dita “doutrinação”. (3) Não é fato notório que a doutrinação ideológica é uma prática corrente nas salas de aula. Se ela acontece, ainda precisamos estudá-la para conhecer seu caráter e extensão.
Além disso, o movimento apresenta um perfil imaginário do “doutrinador”: professores que debatem temas políticos e/ou morais, predominantemente pertencentes à esquerda. Mas, novamente, o movimento ESP não apresenta nenhum dado comprobatório que permita auferir este perfil. Prejulgar a suposta doutrinação como fenômeno exclusivo ou predominante dentre professores de esquerda é mais um preconceito que carece de qualquer análise da realidade e escancara o caráter tendencioso do projeto.
O diagnóstico motivador do ESP, antes de dizer algo sobre a realidade das escolas brasileiras, nos permite pinçar elementos que compõem a ideologia do próprio ESP. Há nele uma indisposição para com a presença de tendências de esquerda na escola, taxando toda manifestação nesse sentido como “doutrinação”. Enquanto isto, a divulgação de ideias conservadoras, ou mesmo a pregação religiosa em sala de aula, não são ao menos mencionadas, sequer como objeto a ser investigado.
Isto significa que a imposição dos valores do professor aos alunos pode ser banalizada e defendida como liberdade de expressão ou de cátedra? Não. Conhecendo as dimensões e características do problema, teremos que criar maneiras de enfrentá-lo no âmbito das escolas. Mas nem mesmo nesses casos as propostas do movimento são positivas. Ao estabelecer que alunos e pais denunciem professores ao ministério público para que estes sejam investigados, a tendência é aumentar o clima de violência presente nas escolas brasileiras. É mais uma maneira de criar hostilidades entre professores e alunos, além de ampliar o controle do Estado sobre a atividade do professor.
Ora, para estes casos, ao invés de criminalizar a prática docente, não seria mais produtivo ampliar a discussão com a comunidade escolar a fim de buscar as melhores soluções?
MEUS FILHOS, MINHAS REGRAS
Outro pressuposto do qual parte o movimento ESP baseia-se numa interpretação peculiar de um artigo da Convenção Interamericana de Direitos Humanos segundo o qual é “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. Para o movimento, este artigo garante que os valores políticos, morais ou religiosos dos pais não sejam questionados ou contrariados pelo professor e, em alguns casos, até mesmo pelo conteúdo abordado em determinadas disciplinas. Mais que isso, seria dever do professor impedir que terceiros (outros alunos) também violassem o direito dos pais, censurando aquele que contradiz ou questiona esses valores.
Dessa concepção decorrem alguns problemas intocados pelos defensores do movimento. Em primeiro lugar, em uma sala de aula há diversos alunos, oriundos de grupos familiares distintos, possuindo uma diversidade de valores políticos, morais e religiosos. Se o direito previsto na Convenção Interamericana de Direitos Humanos implica que os valores da família do aluno devem ser parâmetro para as aulas, como garanti-lo a todos os alunos? Em muitos contextos, ao defender os valores de uma família, o professor estará violando os de outras. Somente assegurando aulas particulares para todos os alunos, em todas as disciplinas, e com um levantamento prévio dos valores de todas as famílias dos alunos, é que o Estado garantiria a existência desse direito. Na verdade, o respeito à diversidade de valores políticos, morais e religiosos em sala de aula não quer dizer que os temas e abordagens devam ser pautados nos valores familiares. Será que a citada Convenção prevê aulas particulares para todos os cidadãos?
Isso nos leva ao segundo problema: o que deve definir o currículo escolar, os valores familiares ou o conhecimento científico adquirido no âmbito das diversas disciplinas? Ao afirmar a prioridade dos valores familiares frente ao conhecimento científico conquistado pela humanidade, o ESP explicita mais uma vez seu conteúdo ideológico conservador e anticientífico, aqui travestido de defesa dos direitos humanos.
Em terceiro lugar, existe nesta abordagem uma interpretação específica de como devem ser as relações entre pais e filhos. Essa noção também aparece numa frase dita como “slogan” pelo coordenador do ESP, o advogado Miguel Nagib: “Meus filhos, minhas regras”. Mais uma vez nos deparamos com o conservadorismo do movimento, nesse caso no âmbito da moral familiar, que entende os filhos como propriedade privada dos pais (seria do pai?) e não aceita que eles sejam expostos à pluralidade de ideias.
O PARTIDO DA ESCOLA SEM PARTIDO
O movimento Escola sem Partido diz buscar a neutralidade do ensino para assegurar a liberdade de aprender dos alunos. Entretanto, o que se constata é uma perseguição aos professores de esquerda e/ou progressistas. Segundo o site do ESP, os professores de direita, quando doutrinam, atuam isoladamente. Logo, não são alvo do projeto de lei. Ele busca denunciar e perseguir professores de esquerda, na medida em que incentiva alunos e pais a filmarem e fotografarem as aulas supostamente doutrinadoras.
Embora o foco do movimento não seja a proibição de temas a serem abordados em sala de aula, o projeto apresentado no Senado veta a discussão sobre teoria de gênero, o que explicita seu caráter conservador e sua ideologia. O projeto nega uma discussão ampla e madura sobre um tema dramático da sociedade brasileira4. Afinal, o papel da educação não é discutir as demandas sociais do país e fornecer subsídios para que os alunos desenvolvam reflexões mais elaboradas sobre sua realidade? Não é isso que o projeto propõe.
Além disso, o movimento implicitamente considera o problema da “doutrinação” como consequência da redemocratização, como demonstra em seus documentos: “Diante dessa realidade [da doutrinação] – conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos [...]”. Seria aqui uma
coincidência ou mais uma demonstração do conservadorismo político do grupo? Estaria o ESP propondo uma volta à ditadura?
IDEOLOGIA NA ESCOLA
Ao contrário do que dizem os proponentes do ESP, a escola é conservadora. O espaço escolar reproduz a dinâmica semelhante aos espaços empresarial e carcerário, no qual existem métodos de controle, vigilância e punição minuciosos. O que dizer do diário de classe com seu controle de presenças e faltas? Da avaliação como uma finalidade em si mesma que exclui e hierarquiza os alunos? Da organização espacial da sala de aula que coloca o professor à frente dos alunos, enfileirados e passivos? Da obrigatoriedade de cumprir um currículo, muitas vezes alheio à realidade e necessidade dos alunos? Ou ainda, dos portões e cadeados espalhados pelas escolas limitando a livre circulação?
A escola reduziu-se à vigilância e à prática da hierarquia e da submissão. Como diz Mauricio Tragtenberg:
A escola apelando à coação, às técnicas de exclusão, acentua a passividade e submissão como condições de apreensão de um ‘saber’ raquítico, transmitido por mestres desinteressados no processo pedagógico [...]. (5)
Assim como os alunos, os professores também trabalham sob constante vigilância e controle, haja vista a cobrança por parte das secretarias de educação sobre o cumprimento dos currículos, o preenchimento de diários e sistemas informatizados de controle de notas, faltas e conteúdos. Os projetos do ESP podem ampliar o controle sobre os professores, terceirizando a alunos e pais a responsabilidade de fiscalizar e denunciar a prática docente, sob critérios duvidosos.
A “doutrinação” acontece no espaço escolar e se dá através de sua própria estrutura e funcionamento, reproduzindo os valores da sociedade vigente. Essa doutrinação não é criticada pelo movimento, pois convém aos seus interesses ideológicos.
Eu, mal-educada que sou, defendo uma escola realmente livre de doutrinação: radicalmente democrática, que valorize a pluralidade de ideias e expressões, e que estimule a produção e divulgação científica e cultural. Parafraseando minha amiga Rosa Luxemburgo, defendo uma escola onde sejamos “socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
Notas
(1) - A partir de agora, citaremos como ESP.
(2) - 2 PL n° 193/2016 do senador Magno Malta.
(3) - O ESP se baseia em pesquisa da CNT/Sensus na qual foi apontado que os professores consideram importante a promoção da cidadania e a formação de consciência política entre seus alunos. Isso seria, para o ESP, a confirmação de que existe “doutrinação” de forma generalizada. Não consideram que a própria LDB estabelece como função da educação a promoção da cidadania, tal como lemos nos artigos 2°, 22° e 35°.
(4) - Segundo o Grupo Gay da Bahia, 1 gay foi morto a cada 25 horas em 2016. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans do mundo: a expectativa de vida dessa população é de 35 anos, ou seja, menos da metade da média nacional. Além disso, o Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo (dados da OMS) e o assassinato de mulheres negras cresceu 54% entre 2003 e 2013 (Mapa da violência de 2015).
(5) - Administração, poder e ideologia, 1979.
Professora Mal-Educada