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Secundaristas manifestam contra a reforma do Ensino Médio, na cidade de São Paulo, em outubro de 2016
A realidade brasileira parece uma avalanche de tragédias. Cada dia uma nova desgraça é aprovada por um órgão governamental sob a justificativa de reformar algum problema nacional. O empenho dos “doutores da lei” em aprovar as reformas é tão expressivo que temos dificuldade em compreender e digerir cada mudança. E sabemos que não serão poucas.
Dentro das escolas, o furor que envolveu a reforma do ensino médio parece esquecido. Professores, estudantes e funcionários desenvolvem suas atividades (com o mesmo esforço e dificuldade) em meio a dúvidas sobre como serão os dias seguintes. Também pudera! A aprovação da reforma do ensino médio foi realizada em tempo recorde e sem debate com os envolvidos. Somente a publicidade e a propaganda da proposta nos foram apresentadas, além dos pífios resumos jornalísticos, que serviram para confirmar o discurso do governo e pouco ajudam a pensar os problemas que afetam a educação. Mas, agora aprovada, será que essa “reforma” resolverá o problema do Ensino Médio?
A fala oficial defende que “o jovem está desinteressado pela escola, pois o conteúdo é muito chato”, ou que “a educação do século XXI exige aulas inovadoras, sem essa grande quantidade de disciplinas”, com mais “autonomia do estudante”. Assim foi justificada a reforma do ensino médio, voltada especialmente para a mudança no currículo e no tempo de permanência do jovem na escola.
Quanto menosprezo e quanta maldade, vindas de um governo golpista! Afirmar, do alto da montanha de cristal, que os jovens são preguiçosos e não querem se apropriar das ciências, das artes e dos diversos conhecimentos sobre o mundo. É possível acreditar nessa falácia?
Sabemos que a escola está desinteressante para os jovens – e não apenas os jovens do século XXI, pois os do século XX já reclamavam dos mesmos problemas. No entanto, é necessário uma crítica mais profunda: o problema da escola está no excesso de conteúdo ou na forma como esse conteúdo chega aos jovens?
Temos consciência do sucateamento das nossas escolas e da desvalorização dos professores, que acabam reproduzindo uma escola que apenas sobrevive, mas não com força suficiente para abrasar os corações juvenis. Outro problema central do ambiente escolar é a avaliação, que vincula o conhecimento à provas e testes classificatórios. Ora, as ciências nos permitem conhecer o funcionamento do mundo são capazes de promover as maiores curiosidades em qualquer pessoa. Reduzi-las à conteúdo de avaliações, de fato as torna muito chatas!
No entanto esses problemas, e tanto outros, não são citados na (contra)reforma do ensino médio. Pelo contrário, ela define que os atuais currículos sejam cortados pela metade (nas escolas integrais poderá chegar, no máximo, a 43% do total das aulas), sendo a outra metade substituída pelos chamados "itinerários formativos" (ciências humanas, exatas, da natureza, linguagens e ensino técnico), que, supostamente, serão escolhidos pelos estudantes. “Um currículo flexível, que incentiva a autonomia e a iniciativa dos jovens.Uma maravilha!” dizem os entusiastas da reforma. Será verdade?
O governo não divulga, mas consta na lei, que as escolas não serão obrigadas a oferecer os cinco itinerários formativos. Caberá aos sistemas de ensino (secretarias de educação estaduais e municipais) decidir quais itinerários serão oferecidos em cada região. Sabendo da lógica de corte de custos da educação, ocorrerá, provavelmente, a oferta de apenas um ou dois itinerários formativos por escola, definida tanto pela carência de profissionais em determinada área, quanto pela necessidade mercadológica da região. Por exemplo: se em uma diretoria de ensino houver muitos profissionais da língua portuguesa, ela poderá ofertar o itinerário de linguagens na maior parte das escolas. Ou; ainda, caso uma região apresentar necessidade de profissionais de logística, este curso técnico, provavelmente, será priorizado nas escolas.
Quanta baixeza! Divulgar aos quatro cantos que os estudantes se tornarão autônomos e terão o direito de escolher, enquanto as diretorias de ensino sequer serão obrigadas a lhes escutar. Na verdade, o conchavo entre governos e empresários locais poderá definir os currículos escolares. Que escolha caberá ao estudante?
Por outro lado, mesmo nas escolas que oferecerem todos os itinerários, essa lógica de escolha é contestável sobre a perspectiva pedagógica – para não dizer cruel. Ela força o estudante a decidir por uma área de trabalho e estudo muito cedo. Justo no momento em que ele deveria ter contato com a multiplicidade de referenciais científicos e culturais, importantes para a formação integral do ser humano.
Neste ponto que entra o tema do ensino técnico. O discurso oficial anuncia que o ensino técnico permitirá que o jovem conclua o ensino médio pronto para o ingresso no mercado de trabalho. Será mesmo? Os alunos que optarem pelo ensino técnico estarão, ao mesmo tempo, distanciando-se da universidade pública, uma vez que esta modalidade de ensino não prioriza os conteúdos cobrados no Enem e vestibulares. Ele poderá entrar no mercado de trabalho (se houver emprego!), provavelmente em condição de subemprego e sem perspectivas de chegar a uma carreira sólida. É como dizer a esses estudantes: “vocês podem fazer o curso técnico de auxiliar de enfermagem, mas não estudarão para passar no vestibular em medicina”.
A tendência é que a maioria dos estudantes se interesse pelo ensino técnico como resposta às necessidades de sobrevivência, enquanto os jovens mais ricos poderão se dedicar ao estudo que lhes levará à universidade. Ou seja, fica evidente como esta política alimenta a desigualdade social. Sabendo da imediaticidade dos problemas que enfrentam os trabalhadores brasileiros, uma reforma séria por parte do governo deveria garantir condições de sobrevivência e estudos para as pessoas de baixa renda, possibilitando uma melhor rentabilidade no futuro. Mas, ao contrário, oferecem aos juvens a ilusão de um caminho fácil para mantê-los empregados.
A lei sobre o ensino técnico carrega ainda uma série de obscuridades, como a “inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo” e o estabelecimento de “convênios com instituições de educação à distância com notório reconhecimento”, que delega a formação do ensino técnico para setores da iniciativa privada, sem a exigência da empresa atuar no ramo educativo. Em outras palavras, aquele que optar pelo ensino técnico terá seu currículo cortado pela metade e poderá ter sua formação realizada no interior da fábrica e demais locais de trabalho, ou mesmo através de cursos profissionalizantes virtuais. Possivelmente observaremos uma ampliação do contingente de trabalhadores precarizados e um aumento do nível de evasão escolar. É o que os especialistas engravatados chamam de "flexibilidade" e "novas alternativas educacionais do século XXI" e nós chamamos de redução do acesso ao conhecimento para a formação de mão de obra barata.
Uma das consequências dessas mudanças será a necessidade cada vez menor de professores, uma vez que, para a modalidade de ensino técnico, estarão habilitados os profissionais com “notório saber”. Essa medida anda em compasso com a contumaz desvalorização do magistério, realizada ano a ano nos estados e municípios, com os baixos salários e as degradantes condições de trabalho.
No Estado de São Paulo, já sofremos os primeiros efeitos da nova política para o Ensino Médio. Com clara intenção de dificultar a vida dos professores, o governo criou a resolução SE 72/2016, que arbitra sobre a atribuição de aulas na rede estadual, submetendo professores a assumir aulas à revelia de seus interesses, sob pena de extinção de seus contratos. Além disso, vários professores contratados estão sem aulas até hoje (meados de maio), caindo no desemprego. A escola será tão flexível que não precisará de professor. Aos profissionais da área, sugerimos procurar desde já outra profissão (se ao menos pudéssemos cursar o ensino técnico que será oferecido aos estudantes, mas nem isso!).
Poderíamos ainda elencar diversos outros elementos prejudiciais da contrarreforma do ensino médio, como a eliminação de matérias básicas, a ampliação do ensino integral sem aumento efetivo de gastos, e sem a proposta de uma educação humanista. Mas, preferimos direcionar nossa reflexão para os objetivos dessa (contra)reforma: Qual a intenção do governo em aplicá-la, já que não há nada positivo em relação à melhoria da educação?
Esta contrarreforma faz parte do receituário neoliberal, de precarização e sucateamento dos serviços públicos e transferência dos recursos públicos para o setor privado, tal como o congelamento dos gastos públicos por vinte anos aprovado neste governo. O governo vai piorar a escola pública e arranjará maneiras de reduzir custos. Entre as propostas de redução de gastos, está permitir que o setor privado participe da gestão do aparato público e dele retire renda.
Outra alternativa, que explicaria a pressa na aprovação da contrarreforma, é a tentativa de dar uma resposta à insatisfação social com a qualidade do ensino público. No entanto, não se trata de uma preocupação com o índice do IDEB ou do PISA ( como se diz) mas uma resposta à insatisfação dos estudantes, professores e setores sociais que vêm se movimentando nos últimos anos e reivindicando transformações nas escolas. Podemos citar as greves de professores que ocorreram em diversos estados do Brasil nos últimos anos, depois a onda de ocupações das escolas por estudantes, também em escala nacional. Todos estes movimentos tinham propostas para melhorar a qualidade de ensino, como a diminuição de alunos por sala, a melhoria da estrutura, o aumento de salários, etc. Em contraponto, o governo implantará outro projeto, totalmente distinto e distante das aspirações populares. É como se ele dissesse: “o problema da educação no Brasil é o currículo, vocês estão errados, parem de baderna e vão para a escola!”.
Por fim, devemos questionar o interesse pela formação de mão de obra. Que tipo de trabalhador será formado com este ensino? Exaltação de português, matemática e inglês e do ensino técnico, em detrimento das demais ciências? Por que se pretende reduzir a possibilidade do jovem acessar às outras ciências? Por que tanta preocupação em inseri-lo no mercado de trabalho de forma precoce e precária? Precisamos pensar sobre isso.
Mas afinal, seria este o único caminho para a reformulação do ensino?
Uma transformação que envolve a maior parte da população brasileira e o seu futuro deve ser feita de forma democrática, com ampla discussão na sociedade (especialmente entre pais, juventude e profissionais da educação). Essa reestruturação deve ser realizada sem a ilusão de que existem respostas imediatas, autoritárias ou mágicas para os problemas que extrapolam o ambiente escolar.
Neste sentido, supomos ser indispensável olhar atentamente para as reivindicações dos estudantes e professores que vêm se mobilizando nos últimos anos, em greves e ocupações de escolas. Algumas das reivindicações são: maior participação nos órgãos decisórios das escolas e sistemas de ensino, diminuição da quantidade de alunos por sala, valorização da carreira docente, melhora da infraestrutura das escolas, garantia da liberdade de cátedra, possibilidades de discussão de novas práticas pedagógicas etc. Estas mudanças não virão da decisão de um governo (ainda de procedência duvidosa), mas da mobilização e do trabalho dos setores envolvidos.
Reaja ou seja pedra!
(Professora Mal-educada)