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A violência contra a mulher é um fenômeno presente em diversas épocas. Durante considerável tempo foram negados direitos fundamentais às mulheres e, mesmo que progressos sejam observados nesse âmbito, é possível perceber que a igualdade de oportunidade de gêneros ainda é impedida em virtude da perpetuação do machismo. O machismo, antes predominantemente observado na violência física contra a mulher, hoje é assinalado também na violência psicológica. Como a violência psicológica é um aspecto subjetivo, é dificultoso que a vítima ou o agressor reconheçam a prática da violência. Destarte, o fenômeno da violência psicológica contra a mulher passa a ser assimilado e praticado de forma imperceptível.
O artigo apegar-se-á, principalmente, ao fenômeno do gaslighting, termo este que diz respeito ao tipo de violência psicológica em que o agressor faz com que a vítima duvide de sua própria sanidade mental. Em aspectos gerais, o gaslighting tem efeitos de estigma da imagem da mulher, fazendo com que a sociedade dê legitimidade ao estereótipo de que a mulher é desequilibrada mentalmente e emocionalmente. Por conseguinte, a imagem construída da mulher como um ser carente de razão, faz com que seja reforçada, ainda mais, a ideia de que mulheres não podem, por exemplo, ocupar cargos de alta responsabilidade no ambiente de trabalho. Em relacionamentos amorosos e no ambiente doméstico o gaslighting é recorrente, sendo disposto como uma arma, de maneira naturalizada, do homem para fazer com que a mulher duvide de sua própria capacidade mental e física, fazendo com que seja corroborado ainda mais o conceito de submissão da mulher.
A pesquisa fundamentou-se em um método bibliográfico, priorizando obras e textos produzidos por grandes mulheres intelectuais. A escolha do referencial teórico foi feita de maneira simbólica para que reforce ainda mais o objetivo principal do trabalho: a demonstração de que as mulheres podem ocupar, excelentemente, todos os lugares da sociedade.
A Violência como forma de manutenção do status quo
Para que se entenda a complexidade de fatos que envolvem a violência psicológica contra a mulher é preciso, inicialmente, que se observe o conceito completo de violência, como ela pode se manifestar e, no que tange as relações sociais, a finalidade para qual é usada. Antigamente, a violência era vislumbrada apenas em um aspecto de ferimento à integridade física. Não obstante, atualmente, a violência psicológica é também colocada em pauta visto que os seus efeitos são tão nocivos quanto os efeitos de uma agressão física.
Para Saffioti (2004), a violência é uma ruptura de qualquer forma de integridade da vítima, seja ela física, psíquica, sexual ou moral. Nesse aspecto, é observado que a violência pode se revestir de diversas maneiras e, ainda mais, ela também atende a grupos específicos que visam a manutenção de poder sobre outros grupos. Arendt (1994) irá definir que o poder não é propriedade de um indivíduo, mas de um grupo. Sob esse aspecto, é possível vislumbrar o uso da violência como um instrumento que visa a manutenção do poder e, no que diz respeito ao contexto social e histórico sobre a desigualdade de direitos entre os gêneros, a violência, desde os tempos de outrora até os atuais, se configurou numa ferramenta que corrobora a submissão da mulher à figura masculina.
Marcondes Filho (2008, p. 22) irá ressaltar a estrutura da violência que visa a manutenção do status quo
"Nas sociedades marcadas por relações de violência, como a brasileira, a violência torna-se uma linguagem organizadora, forma de senha de identificação que distingue os iguais. Entre os critérios desse caráter linguístico da violência, podem ser apontadas a definição de regras próprias de funcionamento, as autojustificativas emocionais e a
ausência de explicações racionais; enfim, um sistema em que a regra de acesso é o exercício puro e simples da violência. A violência é, assim, uma linguagem possível que subsume das demais manifestações de cada um e as legitima. Ela organiza as relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão e exclusão e institui-se como um único paradigma." (MARCONDES FILHO, 2008, p. 22)
Analisar o aspecto da violência ampliando o fato sobre a qual objetivo ela atende é concluir que, considerando as desigualdades sociais existentes, a violência tem o papel de legitimar o homem com o poder e a mulher com a submissão. A violência masculina contra as mulheres se tornou um fato reiterado a ponto de construir uma estrutura social. Sylvia Walby afirmará que “a violência masculina contra as mulheres tem todas as características que se poderia esperar de uma estrutura social” (1990, p. 128).
Naturalização da violência psicológica contra a mulher
Quando Beauvoir diz que "ninguém nasce mulher: torna-se mulher" (BEAUVOIR, 2009, p. 267), remete-se a uma ideia de que ser mulher não é um dado natural, mas o resultado de uma história e de um contexto social. Não há, de fato, um destino biológico ou o psicológico que defina a mulher como tal. O resultado da imagem feminina advém da história da civilização, resultando na configuração atual existente. Belotti (1985) afirmará que, na educação infantil, muito antes da criança ser consciente, são inseridas no seu corpo modos de comportamento geral que, mais tarde, na vida adulta, a mulher encontrará no seu próprio destino, como características de si.
Historicamente, é possível observar que na cultura ocidental as mulheres são instruídas a exercerem o papel de doçura e de graciosidade, remetendo a um aspecto maternal, amoroso e ingênuo. Quando uma mulher não possui essas características, logo é vista através de um certo estigma pela sociedade. Conwell (1987) irá assinalar o patriarcado e a masculinidade hegemônica como sistemas de poder onde homens são privilegiados em relação às mulheres. Para embasar esse pensamento, Safiotti afirma que "o poder apresenta duas faces: a da potência e a da impotência. As mulheres são socializadas para conviver com a impotência, os homens - sempre vinculados à força - são preparados para o exercício do poder" (SAFIOTTI, 2004, p. 84).
A partir dessa realidade, é possível observar que essa configuração social de papéis de gênero advém de uma perspectiva histórica, onde as mulheres, pela visão da sociedade, nunca poderiam se igualar aos homens no que diz respeito aos papeis sociais atribuídos. Assim, descreve Soihet
"De acordo com a maioria dos filósofos iluministas, paixão, imaginação, mas nunca a razão, constituíam-se em qualidades das mulheres. Não seriam capazes de criar, e, mesmo quando conseguissem ter acesso à literatura e a determinadas ciências, estariam excluídas da genialidade." (SOIHET, 2009, p. 370)
"Para a maioria dos iluministas era patente a dificuldade das mulheres de abstrair e generalizar, ou seja, de pensar. Assim, o processo genético dos conhecimentos que conduz ao pensamento abstrato teria na mulher ficado congelado, completando-se apenas nos varões. A mulher teria permanecido na etapa da imaginação. Não a imaginação que engendra o conhecimento, mas aquela enganosa que nos faz tomar os desejos por realidades, cujo excesso pode levar à loucura e, mesmo, à morte." (SOIHET, 2009, p. 370)
Destarte, a violência psicológica se torna um fenômeno naturalizado, assim como afirma Soihet
"Tais teorias, construídas e instauradas por homens, restritivas da liberdade e da autonomia femininas, que convertem uma relação de diferença numa hierarquia de desigualdade, configuram uma forma de violência. As mulheres não são tratadas como sujeito e o objetivo é impedir sua falta e sua atividade. Nesta perspectiva, a violência não se resume a atos de agressão física, decorrendo, igualmente, de uma normatização, na cultura, da discriminação e submissão femininas. Aliás, o avanço do processo de civilização entre os séculos XVI e XVIII corresponderia a um recuo na violência bruta, e os enfrentamentos corporais seriam substituídos por lutas simbólicas." (SOIHET, 2009, p. 370)
Chartier assinala que que “definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica ajuda compreender como a relação de dominação – que é uma relação histórica, cultural e linguisticamente construída – é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutível, universal” (CHARTIER, 1995, p. 40).
É possível perceber que o fato das mulheres serem abstraídas, historicamente, do universo racional ou da produção intelectual, por exemplo, fez com que se consolidasse uma violência psicológica naturalizada, onde a mulher, em muitos momentos em suas relações sociais, passa a duvidar mais facilmente de sua sanidade e capacidade mental a realização de tarefas. Ou seja, historicamente, a mulher só poderia se sentir útil se exercesse o papel social que lhe foi atribuído: o de mãe, de educadora ou de cuidadora do lar. Quando a mulher se recusa a assumir esse papel, ou quando ainda não demonstra ter as características femininas socialmente construídas, facilmente é vista como desequilibrada e, por muitas vezes é afastada do convívio social, tendo seus próprios direitos negados ou escondidos.
"Aquelas dotadas de erotismo intenso e forte inteligência eram despidas do sentimento de maternidade _ característica inata à mulher normal - e extremamente perigosas. Essas mulheres constituíam-se nas criminosas natas, nas prostitutas e nas loucas que deveriam ser afastadas do convívio social." (LOMBROSO, 1896, p. 36).
Gaslighting como forma de violência psicológica contra a mulher
Primeiramente, é considerável observar que, de acordo com a Constituição brasileira, a lei Nº 11.340/2006, comumente conhecida como Lei Maria da Penha (2006), confere que a violência psicológica é entendida como qualquer conduta que cause à mulher dano emocional e diminuição da autoestima. Que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Dessa maneira, faz-se imprescindível, citar o gaslighting como forma de abuso psicológico, causando danos emocionais, diminuição na autoestima, constrangimento e manipulação do comportamento da mulher. Stern (2007) destaca que o termo gaslighting surgiu de uma peça intitulada “Gas Light" (1938), em que um marido tenta enlouquecer a sua esposa diminuindo todas as luzes – que funcionavam a gás – da sua casa e, então, negando que as luzes tenham mudado, enquanto a sua esposa aponta a diferença.
Liguori assinala que entende-se por gaslighting a violência emocional, por meio de manipulação psicológica, que leva a mulher e todos ao seu redor a acharem que ela enlouqueceu ou que é incapaz. É uma forma de fazer a mulher duvidar de seu senso de realidade, das suas próprias memórias, da sua percepção, do seu raciocínio e da sua sanidade (2005).
Geralmente, a mulher que sofre gaslighting é chamada de louca ou desequilibrada por adotar uma certa postura que, se fosse praticada por um homem, não seria vista da mesma maneira. Recentemente, foi veiculado pela mídia um exemplo elucidativo de prática de gaslight:
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Figura 1 – Exemplo veiculados pela mídia de como o gaslighting e de como as mulheres são vistas de outra maneira por terem os mesmos comportamentos do homem
Fonte: ISTOÉ (2016); Revista Época (2010)
É possível perceber que as características “louca” ou “desequilibrada” tem conotações negativas, mas não sentido diagnóstico. No caso, esse termo não é usado pelo autor da violência como um conceito clínico, mas sim como um conceito social. É importante ressaltar que o “louco”, na sociedade, é uma construção social mutável e depende do contexto histórico inserido. O “louco” é o inábil, aquele que não serve para a produtividade. A questão da loucura é associada tanto à psicose, que são os transtornos mentais graves, quanto à histeria. A histeria é comumente associada ao universo feminino, ao lugar que a mulher ocupa, o lugar da frágil e da submissa. Logo, quando a mulher é vista fora desse modus operandi, logo lhe é atribuído o papel de desequilíbrio, o papel de quem está inábil para conviver em sociedade e de tomar decisões importantes sob sua, principalmente nos âmbitos político e profissional. Além disso, o gaslighting é uma ferramenta presente em muitos relacionamentos e no ambiente doméstico, que leva as mulheres a abrirem mão de suas escolhas, de suas opiniões e até de cuidar de sua própria vida. É um utensílio de opressão e controle e que fere a humanidade individual.
Dessa maneira, observa-se que o gaslighting é um fenômeno comumente reiterado, mas difícil de se notar, por ser de natureza subjetiva. Em muitos dos casos, a vítima não tem consciência de que é violentada e quem pratica o ato, muitas vezes, não tem discernimento da conduta violenta. Torna-se ainda mais dificultoso por se viver em uma sociedade em que boa parte de sua cultura é fruto de uma construção social baseada no patriarcado e que ratificam o machismo como mecanismo de poder. É de suma importância a plena observância dos diálogos e dos debates, além da produção científica, acerca da violência psicológica atrelada à violência de gênero.
Considerações Finais
Para concluir, é importante assinalar que todas as pessoas, independente de gênero, estão sujeitas a sofrer algum tipo de violência, seja ela física ou psicológica. Não obstante, a força da desigualdade entre os gêneros demonstra uma enorme injustiça quando se fala sobre igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. A recorrência de como a mulher sofre essa violência se demonstra maior e, por isso, merece uma especial atenção. Atualmente, cerca de 52% da população mundial é feminina, no entanto, pode-se observar que ainda é ínfimo o número de mulheres que ocupam altos cargos de responsabilidade e de liderança. A maioria das posições de poder ainda é ocupada pelos homens. Percebe-se que o problema do gênero mora no fato de que é ele quem determina quem serão as pessoas, em vez das pessoas se reconhecerem como são.
É possível observar que a violência psicológica e simbólica está enviesada na cultura de muitos povos ao ponto de se tornar natural, sendo assim, um aspecto de dificultosa perceptibilidade. A violência simbólica é ratificada no cotidiano, seja pela mídia, pela literatura, pelas relações sociais etc. Os resquícios do machismo e dessa desigualdade necessitam, mesmo que paulatinamente, de uma correção. As mulheres não podem e não devem ser apagadas, silenciadas ou caladas. A violência psicológica precisa, aos poucos, deixar de ser um empecilho para essa correção.
Beauvoir se imortalizou com uma das obras mais importantes para o feminismo e traz a crítica de que o homem é visto como ser humano e a mulher apenas fêmea. A preocupação da filósofa existencialista versava, principalmente, sobre o fato de as mulheres serem reconhecidas como iguais apenas na medida em que agem como os homens (2009). É preciso, por fim, empoderar as mulheres e dialogar com os homens, para que a mulher seja vista de uma maneira humana e para que, também, seja reconhecida por suas características que superam as que a sociedade patriarcal impôs. Mulheres são tão inovadoras, criativas e inteligentes como os homens. É preciso que toda pessoa observe que quanto mais alto alguém pode chegar, mais mulheres irá encontrar.
Referências
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BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha). Brasília: Senado Federal, 1988.
CHARTIER, Roger. Diferença entre os sexos e dominação simbólica. (nota crítica). Cadernos Pagu, Campinas, n.4, 1995.
CONNELL, Raweyn. Gender and Power: Society, the Person, and Sexual Politics. 1. ed. Stanford University Press: Palo Alto, 1987.
DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
GAS Light. Direção: Patrick Hamilton. Londres: Apollo Theatre. Primeira exibição em dez/1938.
GIANINI BELOTTI, Elena. Educar para a Submissão: o descondicionamento da mulher. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
ISTOÉ. São Paulo: Ed. Três, n. 2417, 06 abril.2016.
LIGUORI, Maíra. O machismo também mora nos detalhes. Disponível em: < http://thinkolga.com/2015/04/09/o-machismo-tambem-mora-nos-detalhes/>. Acesso em 12 de junho de 2017.
LOMBROSO, Cesare. La femme criminelle et la prostituée. Traduction de l'italien. Félix Alcan Editour: Paris, 1896.
MARCONDES FILHO, Ciro. Violência fundadora e violência reativa na cultura brasileira. IN: São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 15 Nº.2.abr/junho, 2001. Site disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000200004>. Acesso em 30 de maio de 2017.
REVISTA ÉPOCA. Porto Alegre: Ed. Globo S/A, n. 632, 26 jun.2010.
SAFFIOTI, Heleieth, I. B. O poder do macho. 1 ed. São Paulo: Moderna, 1987.
SOIHET, Rachel. Formas de Violência, Relações de Gênero e Feminismo. IN: PISCITELLI, Adriana. PEREIRA DE MELO, Hildete. MALUF, Sônia Weidner. PUGA,
Vera Lucia. Olhares Feministas. 1 ed. Brasília. Ministério da Educação: UNESCO, 2009.
STERN, Robin. The Gaslight Effect. 1 ed. Nova Iorque: Morgan Road Books, 2007.
WALBY, Sylvia. Theorizing patriarchy. 1. ed. Oxford: Basil Blackwell, 1990.
Maísa Carvalho Graduanda em Direito pela UFPI - Universidade Federal do Piauí