Muito antes de pessoas caírem de prédios ao tirar selfie, ou de filtros em aplicativos refinarem fotografias a ponto de filtrarem toda a autenticidade e simplicidade da cena capturada, a fotografia já fazia parte da realidade das pessoas. Seu impacto, não se engane, é comparável ao de descobertas e criações revolucionárias, como a do rádio e internet. Isso porque, entre outras coisas, o advento da fotografia contribuiu para a transformação do nosso imaginário, bem como para a transformação da maneira de representar o imaginário.
Mais do que um simples culto ao gênio, o interesse aqui não é discutir a biografia de Louis Jacques Mandé Daguerre, por exemplo, um dos personagens a quem a construção das primeiras máquinas fotográficas é atribuída. A ideia é estimular uma pequena reflexão sobre as transformações técnicas e como nossa relação com tais transformações acaba por modificar nossa interpretação de mundo, com reflexos na produção artística, por exemplo.
Entre as consequências do avanço científico estimulado pelas elites ao longo dos séculos XVIII e XIX, que investiam em pesquisa associada a tecnologia das forças produtivas, e da revolução industrial em si, a máquina fotográfica aparece como objeto que desperta curiosidade: a “apreensão” de uma parte específica, singular, única da realidade, inigualável, pois detém a acuidade de “fatiar” o espaço-tempo, são características de qualquer câmera fotográfica. As primeiras câmeras precisavam de um tempo enorme pra capturar a cena montada, além de servirem como instrumento de registro em um ambiente construído e pensado para o enquadramento, como um cenário — a fotografia inicialmente fora usada em lugar dos pintores de retrato, estimulando grande número de pintores a migrar para essa nova atividade.
A sensação de tempo congelado seja talvez mais intensa em retratos do século XIX. A singularidade, a intensidade de um personagem retratado durante uma longa exposição evidencia aquilo que a fotografia guarda de mais bonito a inquietante, sua capacidade de registrar um momento específico no espaço-tempo, dando a falsa sensação de controle momentâneo, controle do tempo, pelo tempo que olharmos a imagem. É bem compreensível que pensassem inicialmente que a máquina aprisionava a alma do retratado, como se a prisão da imagem servisse não somente para registrar visualmente uma singularidade do espaço-tempo, mas para absorver a alma do fotografado. As primeiras fotografias eram preparadas em ateliês especializados, com instrumentos necessários para forjar a cena desejada. Essencialmente, a construção de uma cena a ser fotografada lembrava muito a organização na construção de um cenário usado para a pintura de retrato. A fotografia substituíra paulatinamente, portanto, o trabalho do pintor de retratos. Porém, mais do que um instrumento refinado na elaboração de retratos, o uso das máquinas fotográficas acabou transformando o universo das artes visuais, em sua característica mais elementar: o olhar.
Desde o século XVI, as artes plásticas desenvolveram-se apoiadas em alguns aspectos que orientaram os artistas até o século XX. A noção de indivíduo, que emerge durante o renascimento e sustenta a valorização do homem burguês em ascensão, serviu de referência para as composições plásticas que colocaram o Homem de três dimensões no centro das cenas construídas. Não por acaso as primeiras fotografias fornecem imagens que estimulam o culto ao indivíduo, no retrato. Também não é a toa que o técnico de fotografia do começo do século visse seus clientes como o que de mais autêntico existia, já que representavam grupos em ascensão econômica. Foi com Atget que o olhar na fotografia ficou mais claro, deixando os ambientes fechados de lado, livrando-se do mofo dos ateliês, assim como das ideias que ainda representavam o indivíduo tridimensional do início do século XVI.
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fotografada: Dorothy Catherine Draper — 1839. Exposição de 65 segundos.
Verdade que os impressionistas já vinham procurando lugares abertos, lugares que suavizassem a realidade desigual consolidada pelo capitalismo e evidente durante o século XIX, principalmente em cidades fábrica por toda a Europa. Manet, que sobre o impressionismo disse “venha ver obras sinceras”, talvez pensasse que a sinceridade estivesse ali na natureza, pois nas cidades francesas a luta de classes era uma “sinceridade” que muitos preferiam ignorar. Na fotografia, Atget representou um deslocamento espacial e principalmente visual. Com as mãos livres do pincel, o fotógrafo pode então apreender o que o olhar decidisse, sem precisão ou compromisso com o indivíduo — com a fotografia, o valor de exposição da imagem supera o valor de culto (a personalidade) — , como era frequente nas artes plásticas. É nesse ponto que a técnica inibe a “magia” atribuída a arte e aos artistas até o século XIX, como apontou Walter Benjamin. A partir de então, a tensão impulsionada pela técnica da fotografia estimulou um processo de transformação na concepção das artes visuais.
O cinema, que ganhou força cada vez maior ao longo do século XX, reuniu alguns saberes da jovem fotografia e adicionou movimento. O efeito provocado por uma série de fotografias colocadas em série, em uma linha temporal, é digno de destaque. Na Rússia, o cinema do inicio do século passado deu um passo na direção do que hoje assimilamos como algo absolutamente natural. Filmar em locais abertos, pessoas que não sabiam que estavam sendo filmadas (fotografadas) era algo de novo em qualquer parte do mundo. O cinema russo levou o instrumento de retrato até então individual para as ruas e para os anônimos.
A mudança técnica não tardou a ser inserida nos círculos de debate artísticos. Os instrumentos que marcaram profundamente o universo das artes o fizeram em um período em que a técnica era vista como sinônimo de progresso. Portanto, era inevitável a inserção de novas ferramentas e recursos nas atividades sociais e culturais, a despeito das mentalidades que atribuíam valor ao simples desenvolvimento técnico. O cinema, mais do que transformar as técnicas e reeducar o olhar, abriu espaço para a cultura de massa e do espetáculo, disseminadas ao longo de todo o século XX.
Em uma produção cinematográfica, mais do que composição progressiva e linear, o corte é recurso recorrente. Uma montagem passa pela mão de diversos trabalhadores e artistas que, apesar de um objetivo comum, são dotados de subjetividades singulares — como a de um ator, por exemplo. A produção de um filme é coletiva, para o coletivo. Os quadros e esculturas produzidas até meados do século XIX guardavam o silêncio da solidão, eram criadas em sua maioria para serem apreciados individualmente, como a literatura. Esse sintoma do estilo de vida burguês identificado nas produções artísticas foi diluído em outro: o cinema se tornou objeto de produção massificada e efêmera, pelo menos nos grandes estúdios e circuitos comerciais.
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Estúdio de “2001: Uma Odisséia no Espaço” — 1968
A partir dessa modulação visual operada por instrumentos inseridos pela fotografia, as perguntas a respeito da “fotografia como arte” ofuscaram a pergunta que o próprio modernismo nas artes plásticas respondeu — a “arte como fotografia”, e o cinema mostrou isso, foi uma revolução estética. Isso porque o cinema tem o potencial de despertar afetos que são inexplicáveis por qualquer linguagem que não seja a dos próprios afetos, através do que toca, através do despertar do inconsciente ótico (Walter Benjamin).
Entre registros infinitos e edições que flertam com a fantasia, os cortes e edições são prática recorrente em qualquer produção digital hoje em dia. Aí encontra-se talvez e, ás vezes, a técnica. A técnica que desmentiu a magia do mundo contemporâneo, que guarda um traço do real, mas que continua a nos encantar através de filmes, fotomontagens e memes.
“Quando tudo o que se chamava arte se paralisou, o fotógrafo acendeu sua lâmpada de mil velas e gradualmente o papel sensível a luz absorveu o negrume de alguns objetos de uso comum. Ele tinha descoberto o poder de um relampejar terno e imaculado, mais importante que todas as constelações oferecidas para o prazer dos nossos olhos” Tristan Tzara em 1922. In: Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. 1931
Filipe Fernandes
Graduado em História pela FASB - Faculdade de São Bernardo
Pós-Graduado em Ciências Sociais pela CUFSA - Fundação Santo André
Mestrando em História da Arte pela UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo