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Um Dia na Novela das Oito

Foto do escritor: Max MarianekMax Marianek

Atualizado: 26 de mai. de 2021


Eu vivi um dia de coadjuvante em uma novela do autor Manoel Carlos, só faltava o Leblon e uma atriz famosa para fazer a protagonista Helena. Porém eu estava em São Paulo, um mero detalhe, mas o clima mesmo era o carioca, mas não o carioca completo, porque não havia o clima dos morros, mas apenas o do Leblon e Copacabana, o centro do universo para elite carioca, independente do tempo e espaço, da variação das estrelas e do posicionamento do sol.

O grande evento cósmico carioca era a festa de aniversário de 15 anos de uma menina que era filha de um presidente de uma grande empresa nacional de comunicações e de uma senhora, também presidenta da filial brasileira de outra grande empresa de comunicações. Ambos eram cariocas. Eu fui trabalhar nesse dia na equipe de filmagem, era o assistente, como disse era o coadjuvante, eu poderia ser comparado nessa festa ao porteiro do prédio elitista, que sempre sabe onde estão às pessoas e que aparece somente para fazer um comentário depois de uma cena forte na portaria, “meu deus, eu não esperava isso (ou não imaginava isso)”. O salão, que ficava na Vila Olímpia o lugar dos VIPS da elite paulistana, era um lugar todo chiquetoso, com decoração que lembrava a praia de Copacabana (obvio, que outro lugar no mundo existe de melhor), com manequins espalhados pelo salão trajando roupas de banho e com o chão decorado com o desenho das calçadas de mosaico português do Rio de Janeiro. Os utensílios do salão incluíam também um telão que não deixava a desejar para nenhuma grande sala de cinema (Cinemark que se prepare). E o mais engraçado, as empregadas usavam aquela roupa (que eu achava que era um figurino ultrapassado que o pessoal ainda usava nas novelas para não desperdiçar o dinheiro da Globo) branca e preta clássica com detalhes de renda, fiquei sinceramente surpreso ao ver que aquilo era realmente utilizado na vida real! Tudo bem, tudo ótimo, a festa começa, os convidados iam chegando, membros da elite carioca e paulistana integravam o lugar tomando seu champanhe e comendo o seu caviar (e eu continuo quase igual o Zeca Pagodinho, ”caviar, nunca vi, nem comi, só ouço falar”, a única diferença é que agora eu o vi), madames toda enfeitadas (a Hebe Camargo iria se sentir orgulhosa), senhores de respeito vestindo terno e gravata e jovens da elite paulistana que estudavam no colégio Bandeirantes, divididos como num arquipélago de relações, cada um sozinho na sua ilha, cada um em um canto do salão mexendo no seu celular. Até pensei em comprar um papagaio para cada um deles, para que estes pobrezinhos tivessem com quem conversar. Todos brancos, claro, não havia um negro e mulato se quer pra contar história entre os convidados. Por um momento olhei os garçons e outros funcionários e entre eles havia negros, mulatos e brancos. Ai eu entendi porque nos comerciais e nas novelas não há protagonistas negros, lógico na "vida real" eles também não existem, a nossa elite ainda é branca como na época colonial. Só que nesse momento surge um pequeno problema cotidiano para esse reles coadjuvante, a natureza faz seu chamado! Saio à procura de um toalete e quando o encontro sou informado de que não poderia usar aquele banheiro, o dos convidados. Diferente de todas as outras festas que eu havia feito de famílias de classe média, naquela festa eu não poderia usar o mesmo banheiro dos convidados, vai ver por que eu com a minha pobreza poderia carregar um vírus desconhecido, um tipo de ebola dos desfavorecidos, que iria contaminar todo o banheiro e transformar todos os homens da festa em pobres membros da classe trabalhadora. Em todo o caso fui para o banheiro que me indicaram que era para os funcionários do Buffet. Ele ficava no sótão do salão e quando cheguei lá tive uma grande surpresa, o banheiro dos funcionários foi construído claramente num lugar improvisado de forma muito mal feita e contrastava de forma espetacular de todo o clima de pompa e luxo do salão, inclusive o único mictório era ao lado da caixa de energia (não sei se isso é muito seguro, mas tive a impressão de que não era) e a única privada que havia estava no mesmo box do chuveiro. O que me deixou surpreso era a diferença gritante das instalações. A festa continuava linda, elegante e esnobe, com trilha sonora de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Chico Buarque. “Ela é carioca” do Tom Jobim rolou pelo menos 1000 vezes em momentos diferentes da festa. É lógico que essa era a trilha sonora, acho que se tivesse olhado direito teria visto as câmeras escondidas filmando para a nova novela das oito. E após uma retrospectiva de 40 minutos, que falava de todas as viagens internacionais que a guria havia feito, Roma, Lisboa, Londres, Paris, Los Angeles, Nova York, Miami e por ai vai (Ainda nesse momento os amigos da menina brincavam que viajar para a Argentina e Chile era coisa de pobre) e de falar de todas as escolas caras que ela frequentou, no vídeo ainda havia as mensagens de vários atletas famosos patrocinados pela empresa do pai (imagino ele abordando os atletas, “você vai deixar uma mensagem para minha filha, mesmo sem conhecer ela, se não adeus patrocínio”).

Começa o auge da festa, o momento de pegação dos jovens, a balada! As luzes se apagam e começa a batida da música eletrônica de David Guetta , Swedish House Mafia e afins. Esse já é o momento da elite paulistana do colégio Bandeirantes, é o momento VIP – Vila Olímpia. Eu por outro lado me sentia um idiota trabalhando com um avental laranja amarrado no braço, outra coisa que nunca tinha me acontecido em anos gravando festas de casamento e 15 anos. Fomos obrigados a usar aventais laranja para mostrar que estávamos trabalhando na festa, de que não éramos convidados (só as nossas caras já o mostravam, mas só isso não bastava para os ricaços). A festa rolava até que PAAAAAAAA , uma menina no meio da pista começa a ter um ataque epilético, ao meu lado, o pessoal abriu aquela roda imensa em volta e foi ai que eu pude interpretar o meu papel e soltar a minha frase de coadjuvante no momento do auge (tipo do porteiro da novela após um barraco na portaria do prédio chique no Leblon) “meu deus, eu não esperava isso!”. Os funcionários do Buffet chegaram rápidos e ajudaram a menina, levaram ela pra fora e o clima da festa foi embora junto com ela. Depois disso todos foram embora rapidamente, a batida eletrônica diminuiu, as luzes voltaram a acender e o salão se esvaziou.

Após um tempo nós da equipe de gravação começamos a guardar as coisas para também ir embora e é nesse momento que um dos meus companheiros chegou todo animado e me disse: “é Max hoje nos trabalhamos pros Patrões, só gente top aqui, que loco en mano!”. É... Ele estava feliz, por que pela primeira vez na vida dele pode ver por dentro como era o outro lado da vida, da outra classe social, dos ricos, não de uma classe média que pretende ser rica, mas dos verdadeiros “patrões”, do grande empresariado, que é dono dos meios de produção e ele estava feliz por estar perto deles, um sentimento igual à de um cachorro na beira da mesa que vê umas migalhas caindo no chão e balança o rabo feliz, na mesma hora me lembrei de um trecho de um texto do Oscar Wilde que eu tenho que citar aqui: “Frequentemente ouvimos dizer que os pobres são gratos pela caridade. Decerto alguns são gratos, mas nunca os melhores dentre eles. São ingratos, insatisfeitos, desobedientes e rebeldes. Tem toda a razão em o serem. Para eles, a caridade é uma forma ridícula e inadequada de restituição parcial, ou esmola piedosa, em geral acompanhada de alguma tentativa por parte da alma apiedada de tiranizar suas vidas. Por que deveriam ser gratos pelas migalhas que caem da mesa do homem rico? Deveriam é estar sentados a ela, e já começam a se dar conta disso. Enquanto voltávamos de carro, eu vinha pensando sobre tudo que vi naquela noite, sobre todos aqueles brancos, ricos desde gerações imemoriáveis que largaram na frente na corrida da vida e que tem acesso a todas as oportunidades e ficou claro nesse instante qual o meu papel e o da minha classe social - é o de servir – somente isso, servir . Servir aos empresários em suas firmas vendendo nossa força de trabalho, servir a eles comprando tudo o que eles produzem, servir a eles ouvindo tudo o que eles tem a dizer sobre a vida e o mundo nos seus meios de comunicação, tv e rádio, servir a eles nas suas festas, servir a eles sonhando em ser como eles e acreditando que um dia chegaremos lá e por essa crença, por essa fé estupida, aceitar toda essa dominação.

O que eu sei é que depois dessa noite eu entendi as novelas do Manoel Carlos e nunca mais vou critica-las, pois elas são a mais pura expressão da realidade, da realidade dessa elite carioca, que tem a elite paulistana como irmã complementar, que considera o Leblon o centro do universo, que é branca e rica e que enxerga a realidade através dessa ótica míope , que considera o mundo como um local quente e perfeito em quem não existe nada de errado, no máximo uma nota ou outra desafinada de um interprete não muito bom cantando Tom Jobim.

Max Marianek

Graduado em História pela CUFSA - Fundação Santo André

Graduando em Biblioteconomia pela USP - Universidade de São Paulo

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