top of page

A Febre do Rato - Poesia Imoral

Filipe Fernandes

O cineasta pernambucano Cláudio Assis costuma entregar, ao final de cada trabalho, uma pequena amostra da realidade. Sem floreios ou dramas típicos da fantasia da classe média, seu cinema fatia um espaço ou tempo específicos e os devolve ao público com um acréscimo: boas histórias sobre pessoas de verdade. Febre do Rato, de 2011, é um filme de Cláudio Assis. Nele, as pessoas estão lá, e é isso que importa.

Como produção nacional, nos interessa o cinema de artistas como Cláudio Assis. Muito se fala sobre os temas abordados por cineastas brasileiros. Para além do tema - social ou não - o cinema brasileiro tem mostrado que existem outras formas de se fazer cinema, além do modelo importado dos blockbusters americanos. Nada contra os filmes produzidos em hollywood, que gosto muito, aliás. Porém, em um país como o Brasil, que passou por um processo de implementação capitalista via colônia, coisas como a difusão e o modelo de cinema adotado interessam.

Por ter tido os interesses subtraídos ao longo dos processos políticos que se desdobraram no Brasil desde o período colonial, o povo brasileiro pode ter alguma dificuldade em reconhecer-se nas produções - cinema e televisão - que consome. Esse povo, principalmente os que habitam regiões periféricas de grandes cidades, talvez conheça histórias de pessoas da família que, por necessidade, chegaram á cidade em busca de emprego. Talvez não tenham esse tipo de lembrança. Com pouco dinheiro e quase nenhuma instrução, muitos trabalhadores e trabalhadoras aos poucos formaram o público consumidor - e alvo - da cultura televisiva brasileira.

Após o apoio ao golpe militar de 1964, além de transformar-se na porta voz oficial do governo militar, a TV GLOBO ganhou cada vez mais espaço na televisão e nas rádios brasileiras. Assim, passou a monopolizar o espaço de transmissão, com amplo interesse em formar um público fiel. É a partir da televisão que muitos brasileiros conheceram o cinema. As novelas, sem dúvida o carro chefe entre as produções originais da globo, são geralmente variações de tramas e dramas da elite brasileira. Ou tramas e dramas formulados a partir de uma ideia de elite brasileira, forjada e sustentada pela emissora.

Para pessoas com pouco tempo, muito cansaço e sem dinheiro, as telenovelas e filmes apresentados na televisão talvez sejam o único entretenimento, durante o curto período de lazer. Sabendo disso, as variações entre programas e filmes são quase nenhuma: é mais fácil, barato e interessante para a emissora não democratizar as informações, afim de manter um público pouco exigente, acostumado e sem curiosidade. Com esse panorama antidemocrático, os frequentadores de cinema brasileiros costumam ver as produções nacionais com grande desconfiança. O cinema nacional consumido pela maioria das pessoas e disseminado pela mídia oficial é uma amostra genérica do que existe de pior do cinema americano. Ah, e os atores da novela estão lá. Tudo garantido.

Febre do Rato (2011), assim como os outros trabalhos de Cláudio Assis, mostra que as coisas não são o que são simplesmente, e que podem mudar. Em seu cinema, as pessoas são o que há de mais importante. É através dos encontros, costumes e relação com o espaço que elas são apresentadas na tela. Só poderia ser assim, visto que as pessoas e suas histórias são sumariamente apagadas pelo modelo de entretenimento que os meios de comunicação "oficiais" procuram difundir. Nesses modelos, as pessoas não aparecem, pois o espaço privado e a propriedade - espaços frequentes nas grandes produções de cinema do Brasil -não lhes pertence. Em Febre do Rato, as pessoas aparecem quase sempre em áreas externas. Quando a cena se desenvolve em algum espaço privado, uma casa por exemplo, esse espaço aparece com aberturas que provocam a usual dicotomia entre espaço particular e espaço público. Morar em prédio abandonado, discutir relação em um sofá a beira mar: essas escolhas nos mostram que a separação consensual entre público e privado não interessa a Cláudio Assis. Ele atravessa esses conceitos e coloca o brasileiro em cena. É isso que faz de seu cinema político. É esse falar sobre as pessoas e suas relações misturando os conceitos de espaço, de família, de comunidade.

O poeta Zizo, personagem vivido brilhantemente por Irandhir Silva, é o protagonista do cenário criado por Assis. Filmado em Recife, as fotografias nos mostram o contraste do mangue com os prédios da cidade, da umidade dos rios com o calor denunciado nos rostos. É desses contrastes que surge o poeta Zizo.

Em Historia e Memória, o historiador Jacques Le Goff afirma que o poeta, na Grécia Antiga, era visto como alguém possuído pela memória. Por ser filha da deusa Mnemosine (memória), a poesia estava embrionariamente ligada à sua mãe. Em Febre do Rato, o poeta Zizo carrega a memória na ponta da língua. Como um mártir, disposto a abrir mão da própria vida em busca de seu desejo, o personagem de Irandhir Santos vive a poesia, ele é a poesia. Possuído pela memória, é através da poesia transgressora de Zizo que as coisas podem ser transformadas - seja uma crise de casal, seja um evento público de 7 de setembro . Como se para compensar os anos de espoliação e subtração da memória, o povo precisasse do excesso, de alguém disposto a viver pelo excesso, a morrer por ele. O excesso, assim como a poesia, são em Febre do Rato o caminho pelo qual o afeto circula.

O afeto e a poesia no texto de Cláudio Assis mostram que a realidade é uma possibilidade. Assim como o cinema do diretor mostra que cinema, no Brasil, também é possível. Mas pra isso, ele tem que ser do povo. A reação cultural assumida nos trabalhos do diretor pernambucano é providencial pois, além de buscar seu lugar e afirmação entre os idos da cultura dominante - orientada pelo eixo Rio-São Paulo -, o faz de maneira humanizada. Para o povo e do povo, o poeta Zizo trabalha não como um autor, proprietário de textos, mas como alguém através de quem o discurso ganha forma, vira matéria. É através do ato que o poeta ganha vida, e é no ato que Zizo faz poesia.

O cinema, tal como conhecemos hoje, é consideravelmente recente. Ainda na virada do século XIX para o XX, o cinema vivia um período de popularização e experimentação entre as camadas baixas francesas. Ainda distante do modelo de cinema narrativo, muito disseminado pelo cinema norte americano, as exibições cinematográficas do começo do século XX reuniam o entretenimento plebeu, profano, nas chamadas "feiras de variedades", onde o cinema não era a principal atração. Febre do Rato, de Claudio Assis, evoca um senso de comunidade amoral, na medida em que a comunidade existe para além da conformação média, do modelo de cidadania padrão. O modelo de filme, assim como o próprio formato narrativo adotado pelo cineasta, apesar de parecer uma hipérbole, é o próprio realismo, conhecido das camadas baixas da sociedade - e maioria da população. E é justamente às pessoas provenientes de camadas baixas da população que o cinema era dirigido no início de sua difusão, início do século XX, na França.

"Como tudo o que pertence à cultura popular, ele [cinema] formava também outro mundo, um mundo paralelo ao da cultura oficial, um mundo de cinismo, obscenidades, grossuras e ambiguidades, onde não cabia qualquer escrúpulo de elevação espiritualista abstrata." (Arlindo Machado. Pré-cinemas e pós-cinemas. pg 76)

Esse mundo, chamado por Bakhtin de "extra oficial", existia paralelamente ao da cultura chamada "oficial" - conceito que entra em crise ao longo do século XX. O chamado realismo grotesco, outro conceito criado por Bakhtin, diz respeito a esse espaço e tempo específicos, localizados na França, no início do século XX, que lançava outros tons de luz à uma sociedade que via no desenvolvimento capitalista industrial o rumo inevitável da civilização. O cinema nesse período era feito entre as camadas populares, mas, com o desenvolvimento da indústria cinematográfica, e do próprio capitalismo, perde espaço em detrimento de uma cultura vista como "respeitável", formada a partir dos princípios morais - que são o espírito do capitalismo - e difundida como padrão pela indústria cinematográfica.

"O grotesco carnavalesco (...) permitia jogar um olhar divergente sobre o mundo, um olhar ainda não enquadrado pelo cabresto da civilização, de modo a tornar sensível a relatividade dos valores e a circunstancialidade dos poderes e saberes" (Arlindo Machado. Pré-cinemas e pós-cinemas. pg 77)

O cinema brasileiro, assim como outras manifestações culturais, é coberto por uma camada de valores morais que define e circunscreve o que pode ser mostrado, e exclui o que não pode. Tal policiamento moral, claro, não é uma exclusividade do cinema brasileiro. Em Nova Iorque, ainda em 1908, o prefeito McClellan não quis renovar as licenças de funcionamento dos nickelodeons - primeiro espaço exclusivamente dedicado à exibição de filmes - com medo de que se tornassem "antros de bandidos". No Brasil, oitenta anos depois, o Filme Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1972) foi censurado, considerado imoral.

A origem amoral do cinema aos poucos foi sendo domada e transformada, tornando-se conveniente ao público massificado, formado pela indústria cultural. As fantasias e subversões são, ainda na segunda década do século XX, substituídas por espetáculos que procuram a verossimilhança em suas narrativas, onde o naturalismo é disseminado como ideologia da representação: um espelho do mundo, uma imitação da natureza que apresenta na tela a simulação da vida "natural", dando legitimidade a experiência humana. Não a toa, Felix Guatarri chamou o cinema de "divã dos pobres". Esse cinema narrativo, doméstico, que imita natureza, assume uma parte importante na virada moral vivida pelo cinema e disseminado pela indústria.

"Toda a exuberância e toda a esquizofrenia de um cinema de fuga e desterritorialidade se estreitam no reconhecimento da culpa e na purgação pela representação da cena da verdade; 'recalcam-se o prazer e o fascínio, entram em cena a moral e o sentido'". (Arlindo Machado. Pré-cinemas e pós-cinemas. pg 85)

A proposta de Claudio Assis remete as origens do cinema. A proposta do poeta Zizo resgata o comum, o popular. Entre a origem amoral do cinema, e da sociedade, e o formalismo moral inspirado na ética protestante, existe uma série de contrastes que faz do cinema moral-narrativo o resultado de uma tensão entra a pulsão e a lei, entre a canalização e o prazer da fantasia. A ideia é domar o indomável. Cláudio Assis mostra o que entende por realidade e não tenta domá-la. Como ele mesmo disse, seu cinema não é violento, ele mostra a realidade.

Suas histórias, especialmente Febre do Rato (2011), reivindicam ao povo, o que é do povo. A ocupação dos espaços públicos, a confusão entre o público e o privado, e o recurso poético que atravessa a moral burguesa, são ferramentas que confundem o sentido do espectador. Além disso, a proposta do poeta Zizo, assim como a do próprio cineasta pernambucano, é de ocupação dos espaços, de reunião. Como cineasta, Claudio Assis mostra que o cinema existe além de sua conformação temática difundida no Brasil. Como pessoa, ele também mostra que o cinema, a poesia e a cidade são das pessoas, por isso precisam ser debatidas por elas. Para ele pouco importa o discurso polido e oficial. Como na origem do cinema, Claudio Assis te pega pela tentação, pela subversão.

Filipe Fernandes

Graduado em História pela FASB - Faculdade de São Bernardo

Pós-Graduado em Ciências Sociais pela CUFSA - Fundação Santo André

Mestrando em História da Arte pela UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo

26 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page