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Um produto artístico pode ser lido de diversas maneiras. Cada leitura, ou interpretação, depende de uma série de aspectos que envolvem, entre outras coisas, a formação do público consumidor da obra, bem como as especificidades que constituem o sujeito que interpreta determinada produção. Algumas motivações talvez não sejam rastreáveis, ou seja, é pouco provável que se mapeie e compreenda por completo os fatores que levaram a uma interpretação e não outra. A posição social e institucional contam, mas não somente.
Entre as diversas posições que podem ser tomadas diante do filme Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, pelo menos uma é inevitável: entre os problemas que envolvem Recife no início do século XXI, especulação imobiliária, destruição do patrimônio histórico e arquitetônico e, finalmente, a subtração da memória, são traços nítidos de uma posição que não deixa espaço para interpretação. O filme sobre o edifício Aquarius é o filme sobre o poder das construtoras, mas também sobre a voz dos artistas que denunciam a disseminação do avanço obsceno empreendido pelas grandes empresas do setor de construção civil. Contudo, o cinema sobre os espaços físicos de Kleber Mendonça Filho não está sozinho nessa denúncia. Na prática, o filme agrega voz ao coro de pessoas que lutam bravamente contra o avanço dos empreendimentos milionários, a exemplo do projeto Novo Recife — a alusão feita pelo “Novo Aquarius” é clara — que avança sobre o histórico Cais Estelita, no bairro de São José. (ocupe estelita)
Nesse sentido, entre as inúmeras interpretações possíveis sobre a produção artística que o filme Aquarius representa, a dos idealizadores do longa é uma tomada de posição clara frente a uma realidade que ultrapassa qualquer questão moral.
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Em um ensaio de 1933 chamado Experiência e Pobreza, o filósofo alemão Walter Benjamin elabora uma reflexão sobre o conceito carregado pelas palavras que dão nome ao texto. Tal reflexão, inspirada em uma análise dos espaços de habitação, compara de maneira geral as edificações que existiram até o século XIX - assim como os objetos no interior das mesmas - com as casas e os ambientes familiares construídos no pós Primeira Guerra. A alusão ao modernismo, aos materiais como concreto, vidro e ferro, associa o entusiasmo com espaços “limpos” a uma tentativa de esvaziamento da memória, da experiência. O choque da guerra mundial e o fato de o texto ter sido publicado no ano em que o partido nazista subia ao poder com Hitler conotam melancolia e preocupação ao texto. Para Benjamin, os espaços habitacionais estimulados pelo movimento modernista na arquitetura pós-guerra materializam a pobreza e enterram a experiência acumulada e transmitida por gerações que viam nos objetos espalhados pelo interior das casas os símbolos que marcavam a passagem do tempo.
Talvez essa ideia de experiência, referenciada no texto de Benjamin, seja parecida com a presente e defendida com tanta paixão pela personagem Clara, interpretada primeiro por Bárbara Colen e depois por Sônia Braga, em Aquarius. O filme, dividido em três capítulos, se passa em dois momentos temporais ligados, entre outros elementos, pelos membros da família de Clara e por resquícios de memória e experiência identificadas em diversos níveis. A família de 1980 é apresentada no seguinte contexto: A comemoração do aniversário de 70 anos de Tia Lúcia, que acontece um ano depois da superação de um câncer de mama enfrentado por Clara e sua família. Nesse primeiro momento estão todos ali, a geração de Tia Lúcia, a de Clara e seu marido, e a de seus filhos — ainda crianças em 1980.
As lembranças de Tia Lúcia — que só nós, espectadores, e ela, podemos ver — passam longe das conquistas enumeradas pelos filhos de Clara durante a homenagem que fazem. Entre todas as proezas da anciã da família, o afeto, pontuado sexualmente, é o que ocupa sua lembrança enquanto ouve a trajetória de sua vida ser mencionada. O sexo e a libido conduzem toda a trama e são tratados sem moralismos — o grande amor de Tia Lúcia é adúltero. Tal libido é a marca da pulsão de vida que existe em Tia Lúcia, assim como a pulsão de vida que transborda em Clara.
O pathos, o excesso, a paixão que atravessam as gerações da família são marca de um humanismo defendido e bem representado por Clara ao longo da narrativa. Mais do que as conquistas materiais ou profissionais, o que interessava para Tia Lúcia — e isso fica claro quando vemos suas lembranças durante seu aniversário de 70 anos — assim como o que interessa à personagem de Alice Braga, é o tesouro acumulado pela família. O tesouro, que não tem forma e não pode ser medido, é o valor das experiências, o saldo da economia dos afetos.
“Sabia-se também exatamente o que era a experiência: ela sempre fora comunicada pelos mais velhos aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; às vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a filhos e netos. — Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam narrar algo direito? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?"
Benjamin, Walter. Experiência e Pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. 1931
A experiência e as lembranças que referenciam a vida de Clara, assim como as de Tia Lúcia, são tanto imateriais como materiais: a cômoda onde Tia Lúcia transava antes mesmo de ser Tia Lúcia; os longos cabelos de Clara que marcam a superação do câncer; os vinis organizados e o toca discos, presentes no início do filme… são exemplos de objetos que, mais do que seu simples valor de uso, atuam como símbolos que marcam a passagem do tempo, a memória. Talvez não seja por acaso que o apartamento em vias de ser demolido seja o único com vida no edifício Aquarius. A existência de Clara é permeada de objetos que condensam experiência, acumulada e indicada nos materiais espalhados pelo apartamento.
Os cupins na parte final do filme, apresentados com suspense e de forma dramática, remetem ao início da história. Com o título de “O câncer de Clara”, o terceiro e último capítulo da trama encontra nos cupins o desfecho de uma disputa entre o triunfo e a preservação da experiência, de um lado, e o avanço do mercado imobiliário e do setor de construção civil, de outro. Os cupins são temidos por devorarem objetos e madeira, principalmente. No filme, porém, eles marcam a corrosão da memória, da experiência acumulada em Clara. O câncer da personagem, superado no final dos anos 1970, é lembrado pelos cabelos longos de Clara. Mas o que a agride de fato, é a tentativa de extermínio de sua casa, dos símbolos que marcam a trajetória de sua família. O triunfo da vontade, porém, mostra que a vida prevalece até o último minuto contra a construtora e sua tentativa de extermínio da experiência, da cidade, do patrimônio e da própria arquitetura.
Filipe Fernandes Graduado em História pela FASB - Faculdade de São Bernardo
Pós-Graduado em Ciências Sociais pela CUFSA - Fundação Santo André
Mestrando em História da Arte pela UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo