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Culpa e vergonha: conversão de controle social em autocontrole no Estado moderno

Filipe Fernandes

capa da primeira edição de Leviatã, de Thomas Hobbes. 1651

Enquanto animal, é comum ao ser humano negar a condição que o caracteriza. Tal negação, porém, é manifestada, por vezes, de maneira involuntária. A consciência, assim como a presença marcante da morte em nossas vidas, tende a marcar a existência com tons de urgência e desespero. Ao longo dos tempos, foram diversos os modelos e fundamentos científicos ou artísticos, além de místicos e sobrenaturais, criados para cumprir a função de tirar o ser humano de sua condição inicial de bicho.

Na medida em que a cultura foi sendo paulatinamente sofisticada, as estruturas e sistemas de organização social, modificadas ao longo do processo histórico, passaram por um processo de acomodação de grupos de pessoas cada vez maiores, com suas diferenças naturais e sociais — de classe. Essas mudanças, em geral, não aconteceram de forma pacífica, mas através de guerras e conflitos que marcaram a superação e extinção de povos — por suas diferenças sociais, interesses econômicos ou religiosos, por exemplo.

A obstinação e as empreitadas dos diversos povos ao longo da história geralmente têm, no Estado, o fundamento que justifica e impulsiona as conquistas e o domínio sobre outros grupos. É também o Estado, com modelos mítico religiosos que o sustentam, que determina a escala de valores que orientará a vida, permitindo apenas um espectro de frequência de paixões que, acima de tudo, convenham a manutenção da ordem social e a perpetuação das estruturas político econômicas. À escala de valores que orienta a vida humana, comumente associada ao caráter, dá-se o nome de moral.

Os processos civilizatórios até hoje, inequivocamente, apontaram para o controle social. Na medida em que as sociedades se tornaram mais complexas, com mercados que tendiam à expansão e absorção de outros grupos e espaços, também os mecanismos de controle e organização precisaram ser convertidos e sofisticados. Com o intuito de expandir e exercer o domínio econômico e político, os Estados modernos, a partir da unificação da língua, da moeda, dos impostos, e dos exércitos, direcionou o poder rumo a centralização política. Tal processo, que culmina na formação dos Estados nacionais ao longo dos séculos XV e XVI — alguns países europeus originam-se aí — contou com a cooperação de grupos que, separados, viam seu poder ameaçado, mas, juntos, somavam forças que garantiriam — como de fato garantiram — o controle das esferas econômica, política e social. Esses grupos compunham e representavam três esferas de poder: A igreja católica, que intensificava a violência contra grupos protestantes e não cristãos; a nobreza, que temia as revoltas camponesas nos feudos espalhados pela Europa; e a burguesia, que via na unificação e na aliança com o Estado a chance de expandir seus lucros e, consequentemente, seu poder e influência.

Talvez seja impossível mapear completamente a genealogia dos processos que levaram à formação dos Estados nacionais. Porém, as tendências que resultaram na formação desses estados ganham realce e contornos mais claros entre os séculos XIV e XVI. Com disputas violentas e longas — guerra dos cem anos, por exemplo — que marcaram a transição do final da idade média para o período habitualmente referenciado como moderno, foi na organização do Estado centralizado e autoritário que os grupos dominantes puderam exercer o controle social necessário para a manutenção de seu poder. E é através do monopólio do uso da força — recurso amplamente utilizado por Estados — que o processo “civilizador” ganhou forma e legitimação. O controle social, a organização burocratizada e a estrutura verticalizada em classes desiguais são alguns dos aspectos de um processo profundo e intenso, com atravessamentos que alteraram a escala de valores -moral- , tensionando cada vez mais o autocontrole das paixões individuais que, na verdade, camuflava o controle exercido externamente pelo próprio Estado.

Do controle social ao autocontrole

Um exemplo, utilizado por Norbert Elias em O Processo Civilizador (1939), pode ilustrar melhor a mudança empreendida pelos Estados modernos através do monopólio do uso da força física, ao longo dos séculos XIV e XVI; nesse exemplo, o sociólogo alemão pede para imaginarmos a complexidade de um sistema rodoviário contemporâneo, afim de compará-lo com o sistema de vias existente durante a idade média. As estradas simples, sem calçamento, de uma vila de guerreiros da idade média, por exemplo, eram, na maioria das vezes, a principal via de acesso e deslocamento entre espaços longos. Expostas a chuva e ao vento, eram alvo de saqueadores e soldados. As pessoas que utilizavam essas vias precisavam ficar atentas, com os sentidos aguçados, para que, caso fossem atacadas, pudessem, no mínimo, salvar as próprias vidas. Raramente havia colisões. Os indivíduos precisavam estar focados pois, segundo Norbert Elias, “a vida nas estradas principais dessa sociedade exige uma prontidão constante para a luta, e dá livre rédea às emoções, em defesa da vida ou das posses contra o ataque físico.”. A vida nas grandes vias de uma cidade contemporânea, por outro lado, exige atenção diferente. As leis de trânsito, os agentes rodoviários e a sinalização modulam e controlam — com variável grau de êxito — a dinâmica do trânsito. A complexidade desse sistema contemporâneo, porém, supõe um autocontrole dos sujeitos que trafegam pelas ruas e avenidas, pois as grandes ruas e a velocidade de deslocamento dos veículos exige uma dinâmica e atenção que não admitem muitos erros. Assim, as determinações definidas pelo Estado unificado e centralizado — pense no exemplo das rodovias como uma metáfora — pressionaram as descargas emocionais no sentido de contê-las, alcançando um padrão de comportamento socialmente necessário:

… o controle efetuado através de terceiras pessoas é convertido, de vários aspectos, em autocontrole, que as atividades humanas mais animalescas são progressivamente excluídas do palco da vida comunal e investidas de sentimentos de vergonha, que a regulação de toda a vida instintiva e afetiva por um firme autocontrole se torna cada vez mais estável, uniforme e generalizada.Elias, Norbert — O processo Civilizador — volume 2. 1939.

O processo civilizador aponta, portanto, para uma tentativa de padronização dos afetos que, naturalmente, não funciona sem consequências graves. A regulação dos afetos exercida pelo Estado e com influência de sensos místicos — como a igreja — definem o que é considerado bom ou mau. Os valores que regulam a moral e nos dizem o que é socialmente permitido instilam o desenvolvimento de sentimentos como vergonha ou culpa, caso o sujeito não esteja apto — ou discorde — dos valores impostos socialmente. O controle da violência pelo Estado e as definições de bom ou ruim na verdade camuflam o domínio social — inclusive sobre o corpo — exercido pelo governo e amparado por leis que o próprio Estado ratifica. Esse domínio envolve o monopólio do uso da força física, negado ao cidadão comum e condenável, previsto no contrato social — constituição. Em texto de 1915 intitulado Considerações atuais sobre a Guerra e a Morte, Sigmund Freud reflete sobre o domínio aplicado pelo Estado — Freud reflete, especificamente, sobre a primeira guerra mundial, em curso quando da escrita do texto:

Não só utiliza contra o inimigo a astúcia permissível (ruses de guerre), mas também a mentira consciente e o engano intencional, e isto, claro está, numa medida que parece superar o usual em guerras anteriores (…) O cidadão individual pode comprovar com espanto nesta guerra o que já lhe ocorrera em tempos de paz, a saber que o Estado proibiu ao indivíduo o uso da injustiça, não porque pretendia aboli-la, mas porque quer monopolizá-la, como o tabaco e o sal.Freud, Sigmund. Escritos sobre a Guerra e a Morte. 1915

Na medida em que os governos modernos se desenvolveram, juntamente com as forças que disseminaram o modo de produção capitalista — que culminou nas revoluções burguesas do século XVIII -, as dinâmicas sociais e de mercado foram se tornando mais complexas. O projeto iluminista contribuiu para a formulação dos valores que integrariam o Homem contemporâneo. Os conceitos que serviram pra forjar a ideia de cidadania, a base cientificista e a ideia de progresso inevitável são parte do propósito iluminista que, entre outras coisas, firmou os pilares do mundo contemporâneo, a saber: o cientificismo; o culto a técnica; e a crença em uma ética que amadureceria através e juntamente com o progresso. O processo civilizador, nesse ponto, ganhou tons que tingiram o mundo ocidental contemporâneo à maneira do capitalismo industrial — e depois financeiro -, sempre com o Estado administrando os interesses do capital, lançando mão do uso da violência física.

O aprisionamento moral das paixões, intensificado pelo processo civilizatório, busca a supressão dos afetos no intuito de reduzir os contrastes sociais através de uma homogeneização humana. Segundo Freud:

Dentro de cada uma dessas nações tinham-se prescrito ao indivíduo elevadas normas morais, às quais devia ajustar a sua conduta, se pretendesse participar na comunidade cultural. Estes preceitos, muitas vezes rigorosíssimos, exigiam muito dele: uma ampla autolimitação e uma acentuada renúncia à satisfação das pulsõesFreud, Sigmund. Escritos sobre a Guerra e a Morte. 1915

A satisfação das pulsões, reprimida socialmente, pode encontrar relativa compensação nas sociedades cujo processo civilizatório tornou-se demasiadamente brando. O redirecionamento das paixões reprimidas aparecem, nessas sociedades, nas diversas formas de produções artísticas. Norbert Elias afirma que o aumento na demanda de livros é sinal de um avanço no processo civilizador. É necessário, segundo o sociólogo, elevado grau de regulação das paixões para a produção de literatura, por exemplo, assim como para a leitura e compreensão das obras. Porém, a limitação da arte em satisfazer as necessidades pulsionais acaba por satisfazê-las apenas palidamente. A morte, que segundo Freud é endógena, ou seja, acontece de dentro pra fora, ganha força quando as forças externas — Estado — atravancam a dissipação emocional. A contenção afetiva pode resultar em problemas patológicos que deixam sequelas orgânicas conhecidas. A contenção de nossas paixões talvez seja o maior dos projetos políticos.

Filipe Fernandes

Graduado em História pela FASB - Faculdade de São Bernardo

Pós-Graduado em Ciências Sociais pela CUFSA - Fundação Santo André

Mestrando em História da Arte pela UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo


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