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Quais lições podemos tirar da ardilosa técnica de abordagem feita pelo canal “mamãe falei” durante a

Thiago Lisboa

Desde as ocupações escolares de 2015, Arthur Moledo do Val (integrante do MBL e dono do canal “Mamãe Falei”) vem abordando pessoas com suas perguntas retóricas. Assisti vários vídeos do referido canal em que do Val sai à caça das pessoas abordando-as capciosamente. É nítido notar sua ardilosa metodologia.

Com base nas pautas das manifestações, do Val se informa apenas tecnicamente sobre alguns tópicos. O “tecnicamente” significa que ele “estuda” somente os aspectos jurídicos de apenas uma parte das pautas, ou seja, do Val faz um recorte técnico da questão, deixando de lado o todo, ou melhor, a dimensão econômica, política e social subjacentes às pautas. Feito isso, do Val infiltra-se nas manifestações adversárias abordando pessoas, formulando suas perguntas tecnicamente recortadas, desvinculando-as de seu caráter totalizante.

Ardilosamente, do Val dá um caráter valorativo e político às respostas dadas pelos abordados, com o objetivo claro de ridicularizar suas vitimas, mas, principalmente, com o escopo de e desmoralizar politicamente os movimentos sociais adversários. Como as perguntas são capciosas (isto é, recortadas e formuladas técnica e juridicamente, sem vinculação com o todo), qualquer resposta direita leva ao erro, pois a própria pergunta induz explicar o todo pela parte. Fisgados, os abordados por do Val passam a impressão de que são “burros”, de que “não sabem o que estão falando e defendendo porque não se informaram sobre o assunto” e, portanto, são “massa de manobra dos movimentos sociais” (falas do próprio do Val). E se os abordados passarem a bola para do Val, é claro que ele responderá instantaneamente, pois isso faz parte da técnica de abordagem, o que passa a impressão de que ele seria alguém estudado e inteligente.

A título de exemplo, infiltrando-se na paralisação do dia 28 de abril, do Val aborda um manifestante reproduzindo uma pergunta retórica feita por Kim Kataguiri em vídeo contra o mesmo ato, da seguinte maneira: “Com a reforma trabalhista, qual direito o trabalhador vai perder? Qual inciso do artigo 7º da Constituição está sendo revogado?” É claro que a resposta mais simples e objetiva à pergunta é “nenhum direito”, o que leva Artur do Val à próxima pergunta: “Então por que você é contra a reforma e o que está fazendo nesta manifestação? O que você apoia?”

Perceberam agora o tamanho da artimanha? Se levarmos em conta todos os aspectos excluídos da pergunta formulada, isto é, ao considerarmos o caráter totalizante (econômico, político e social) da questão para além do recorte proposto, a resposta é outra: com a reforma trabalhista, o negociado prevalecerá sobre o legislado; e em qualquer negociação que envolva conflito entre capital e trabalho, o primeiro sempre terá nítidas vantagens e maior poder sobre o segundo justamente por vivermos em um sistema (o capitalismo) que, de início, já beneficia o dono do capital em detrimento do dono da força de trabalho, visto que as relações sociais dominantes é regida pelo capital. Viram a diferença?

Não obstante, além da capciosidade engendrada, vale ressaltar ainda outros recursos bem conhecidos e utilizados por youtubers (e pela mídia) que potencializam ainda mais o intento de ridicularizar e desmoralizar seus oponentes, tais como a retórica do arguidor (sim, do Val é muito retórico e persuasivo) e a edição de vídeos. Ou seja, não possível que todos os entrevistados do dia 28 tenham caído em sua ladainha como quer mostrar seu vídeo. No entanto, com o trabalho de edição de vídeos, é possível selecionar apenas aqueles que titubearam nas respostas, passando a impressão que todos os abordados são alienados, sem exceção.

Autocrítica

Revelada a sagacidade embusteira de Arthur do Val, sua buliçosa técnica de abordagem tem lá sua serventia à esquerda em geral, principalmente às vertentes atuais. Por incrível que pareça, seu intento maquiavélico dá à esquerda o benefício da autocrítica na medida em que sua abordagem vil permite identificarmos falhas e lacunas no discurso e prática de militantes e simpatizantes da atual esquerda. Ou seja, apesar do escopo ser outro, a ardilosa técnica de abordagem de Arthur do Val revela que vertentes de esquerda atual precisam repensar suas estratégias teórica e prática, bem como seus respectivos trabalhos de base, seja formando novos militantes ou atualizando o arcabouço de militantes mais calejados e de longa data.

De uma forma geral (e que não vale a pena pormenorizar por hora), Arthur do Val mostra que há falhas e lacunas nos conteúdos, na composição e na organização das vertentes atuais de esquerda, o que reflete falhas e lacunas em suas formas, técnicas, métodos e estratégias de exposição e difusão de pautas e reivindicações, sendo preciso renová-las ou revisá-las, inclusive para melhor enfrentar abordagens adversas como as dele e do MBL.

É claro que qualquer recomendação é passível de dúvida, discussão e crítica; no entanto, diante das circunstâncias e problemas identificados, arrisco dizer que um pouco de planejamento, hierarquia, disciplina e formação continuada de militantes com base em conteúdo classista mais universalizante, tal como os formulados por pensadores clássicos (que inclusive pensaram as bases ideológicas adversárias) não faz mal às novas tendências. Não quero dizer com isso que todos os movimentos atuais tenham que reproduzir os conteúdos e formas dos antigos partidões (até porque isso seria de um anacronismo sem igual), mas apenas afirmar que muitas das falhas e lacunas identificadas na militância atual de esquerda é, a meu ver, resultado de sua própria característica e forma de ser, centrada muito mais em problemas específicos de caráter identitário do que problemas mais gerais de caráter trabalhista, o que resulta em uma prática muitas vezes difusa e fragmentada, sem capacidade de aderência a pautas classistas.

É preciso deixar claro que as recomendações apresentadas não propõem que as vertentes devam assumir uma postura, um discurso e uma prática unívoca, abandonando assim suas especificidades. Muito pelo contrário, o que se propõe aqui é tencionar discursos e práticas universalizantes (a exemplo dos antigos partidões) e particularistas (a exemplo dos novos partidos e movimentos identitaristas), no ensejo de plasmar os pontos comuns entre seus pleitos. Dito de outro modo, a proposta colocada quer dizer que falar e agir em nome de uma abstrata classe operária ou de um grupo social específico é inócuo frente às atuais circunstâncias. Ou seja: nem o porta-voz vanguardista do operariado fabril e nem o indivíduo em seu lugar de fala e vivência tem vez e impacto mais, mas sim a combinação e mediação dessas duas maneiras. A título de exemplo, no lugar do discurso e prática pautar-se nos “direitos das mulheres negras da periferia”, a estratégia é reorientar o discurso e a prática em, por exemplo, três nível ou camadas, a saber: 1) a condição das trabalhadoras em geral no seio do atual universo econômico, político e social; 2) a condição das trabalhadoras negras no interior deste universo; 3) a condição das trabalhadoras negras da periferia no interior deste universo. Ao fazer isso, contempla-se tanto as questões de etnia e gênero, quanto as de ordem trabalhista, portanto, classista e crítica ao capital.

Dito de outro modo, uma das lições que se tira do ocorrido é que o tão criticado verticalismo e burocratismo supostamente adotado pelos antigos partidões precisam voltar à cena com o intuito de tencioná-los aos atuais discursos e práticas pulverizadas realizados pelas novas vertentes esquerdistas, visando com isso reorientá-las, reorganizá-las e enrijecê-las frente aos percalços enfrentados e face à ascensão dessa nova direita.

Quando as vertentes da atual esquerda saírem de suas redomas, voltarem a falar a mesma língua e defender pautas comuns a todas as identidades (enfim, quando as esquerdas atuais planejarem e trabalharem juntas, de forma organizada, disciplinada e, por que não, com uma pequena dose de hierarquia) penso que o ganho será imenso a todas elas, sendo inclusive mais fácil enfrentar quaisquer adversários.

Ora, assim como não se ganha uma guerra sem planejamento, organização, disciplina, hierarquia e desconhecimento do inimigo, assim também uma guerra ideológica não pode ser vencida deixando que sua infantaria corra à sua própria sorte atirando para tudo quanto é lado.

Por favor, relevem a analogia esdrúxula com o militarismo; trata-se apenas de uma estratégia didática que serve de exemplo prático ao proposto.

Thiago Lisboa. Cientista Social especialista em História Social

Mestrando em Filosofia pela UFABC - Universidade Federal do ABC

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